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Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo

Sobrevivendo, todos os dias

(Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Juliana Vicente
  • Roteiro: Juliana Vicente
  • Duração: 115 minutos

Difícil ver um filme como Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo sem sentir uma conexão forte com uma verdade particular vinda daquelas vozes e pessoas. Digo isso porque, afinal, não sou preto, não nasci na quebrada, não cresci ouvindo música preta de guerrilha – eu não poderia ser mais diferente do que o que o grupo canta. Nos encontramos na pobreza, mas mesmo a minha pobreza não era uma associada à violência instantânea, intercalada com o extermínio por ter a cor que tenho. Ainda assim, é um olhar para o que o outro tem a dizer, tem a clamar, uma juventude que queria ter sua voz não mais silenciada. Ao crescer, tomar pra si uma atitude e uma responsabilidade de olhar para os seus e tentar fazer pelos próximos o que não foi feito por você. Paz. É só. Mas não é pouco. 

Juliana Vicente não poderia estar em momento melhor da carreira. Criadora da Preta Portê, na tentativa de dialogar com questões de raça, de etnia, de orientação sexual, todas à margem do que a branquitude quis modelar, sua produtora e seu trabalho estão em lugar de destaque nesse exato momento. Acaba de ser premiada no Festival do Rio por Diálogos com Ruth de Souza e explode na Netflix com esse Racionais, comunicando a voz de um legado já existente e que ela reverbera com ainda mais potência. Seja como for, olhar essa jovem obra da jovem Juliana, é já ter a ideia do que o orgulho preto pode fazer por seus novos filhos. De diferentes pegadas, com diferentes formas de observar a arte e seu legado, os filmes chegam potentes para com suas criaturas e criadores.

Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo
Alile Dara/Netflix

O filme pega o mais representativo da trajetória dos Racionais, sem parecer corrido ou decantado. É uma amostragem de edição muito acertada, que não tem concentração, mas sim uma ideia de conceito do que veio a ser o grupo e seus ideais. De onde partiram Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edy Rock, partiram e partem muitos outros; o que o caminho deles têm de diferencial, que acabou por servir de exemplo para toda uma geração (ou mais de uma, a essa altura), é o que o filme tenta dar conta. Como são um grupo de pessoas com a qual a periferia se fez espelho, e o crescimento exponencial da voz de pessoas comunitárias se faz cada vez mais presente e necessária, entendemos muito de suas trajetórias, aliadas à sua própria voz, aqui ecoadas.

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Não se trata de acompanhar apenas a cena local desses personagens, nem o campo para onde eles foram alçados a partir dos anos 1990; é um conjunto de elementos que faz de Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo ainda mais urgente. Porque esses caras mudaram a cara de um ritmo, e tentam até hoje deflagrar novas discussões a respeito do lugar de onde vieram e em como esses estereótipos ainda se fazem presentes, mesmo com toda revolução (pequena ou grande) que eles propuseram. É uma visão inclusiva para um lugar que Vicente entende que ainda não é acessado por todos, então com o mínimo de didatismo – mas seguindo padrões do documentário – o filme consegue expandir a audição de um grupo que precisou ganhar as ruas para fazer valer sua voz. 

Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo
Alile Dara/Netflix

Enquanto cinema, Racionais têm a urgência que se espera de um longa sobre esses quatro garotos que, ao se tornarem homens, perceberam sua vocação para a liderança. Grande parte do que é dito revela um tanto sobre os quatro integrantes e sua percepção sobre cada tempo vivido; “gente que passa elegante por cima da pobreza” é um momento de reparar a auto estima renascendo de um povo que conseguiu tal feito sendo representado. Yuri Amaral e Washington Deoli editam o material com tanta fúria e pujança quanto as letras cantadas do grupo; existe uma pulsação frenética naquelas imagens, que descobrem mais do que uma cena social, mas principalmente um reconhecimento artístico de algo. Essa montagem de impacto, que une arquivo, fotos, entrevistas recentes e antigas, pontos de vista de diferentes ordens, dão o tom do projeto, vozes que formam um coletivo de pegada rara. 

Ao longo de Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo vamos observando, acima de tudo, o acúmulo de uma consciência que não nasceu naquele universo, mas foi sendo adquirido pela experiência, pela maturidade e pela inteligência de conseguir olhar como testemunha um fenômeno que acontecia com eles mesmos. Há, antes de tudo, um pensamento a respeito de que sua sapiência foi sendo conquistada, uma maneira muito humilde de reconhecer os próprios erros. Quando eles se retiram, por perceberem a repercussão explosiva de ‘Sobrevivendo ao Inferno’, seu quarto álbum lançado em 1997, os Racionais já tinham plantado na juventude uma semente sobre o que se quer ser quando crescer – um outro crescer. Tornar-se homens, amadurecer tendo palpável que se é perseguido por ser preto e periférico, é um crescer absolutamente diverso. 

Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo
Alile Dara/Netflix

Chega um momento do filme, em que o sucesso não é mais consequência do que se faz em estúdio, mas de como repercute sua vida na dos outros. Brown, Jay, Blue e Rock estão há mais de 30 anos mostrando que, entre erros e acertos, conseguiram ter coerência com tudo que pregaram ao longo de três décadas. Dos primeiros bailes de música preta dos anos 80 até a inegável influência que exercem sob outros artistas, formados por eles artística ou emocionalmente, o grupo mostra em Racionais parte sensível de uma trajetória longe de ter fim. Exatamente porque já não é mais um grupo, um movimento ou uma carreira; Racionais MC’s extrapolaram qualquer mero sonho que qualquer um tenha tido. Dentro do grupo ou sendo tocado por eles. 

Um grande momento
A reflexão sobre a violência das letras, e o retiro voluntário

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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