- Gênero: Drama
- Direção: Julia Murat
- Roteiro: Julia Murat, Gabriela Capello, Rafael Lessa, Roberto Winter
- Elenco: Sol Miranda, Lucas Andrade, Lorena Comparato, Isabela Mariotto, Georgette Fadel, Márcio Vito, Dani Ornellas, Rodrigo Bolzan, Julia Bernat, Lucas Gouvea, Simone Mazzer, Babu Santana, Mc Carol
- Duração: 100 minutos
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Quais imagens cinematográficas forjaram o corpo da mulher negra no imaginário popular? Abertamente, esse é o discurso de Julia Murat em Regra 34, filme que chega na competição brasileira do Festival do Rio já vencido o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, há dois meses. É o que fabula Simone, sua protagonista, enquanto tenta encontrar novos sentidos para a própria carne, cobiçada como uma peça de açougue que historicamente foi vendida barata pela criação de planos hegemônicos. Em cena, essas novas estruturas permitem que esses corpos pretos criem sua própria cosmologia de imagens, e que tais imagens sejam livres de possibilidades. Para ampliar seu lastro para o local bem entendido, se colocar nos espaços novos de criação e conseguir reinvestigar os lugares de fala, mas também os espaços físicos que os compõem.
Murat constrói uma carreira em longas de personalidade forte, a partir da pancada que é Histórias que só Existem quando Lembradas. O passo seguinte, Pendular, parece nesse momento como uma porta de entrada para a carta imaginária escrita pela autora para o espectador em Regra 34. Injustamente perseguido por parte da crítica, o filme gerou uma inquietação transformada na potência de seu novo longa, uma produção disposta a gerar debates, interna e externamente, acerca do surgimento de uma nova cartografia de afetos, de expectativas sociais e de ânsias comportamentais. É, acima de tudo, um filme em absoluta consonância com seu tempo, as suas inquietações e as próprias soluções para cada um de seus discursos.
Em cena aberta, Simone se masturba e goza – clama, por assim dizer, seu direito ao papel sexualizado que represente o domínio ao ser quem se é. Sim, a protagonista tem inclusive o direito a sexualização, contando que ela mesma se posicione frontalmente, para assim então se libertar. Simone deseja, com suas experiências, recriar a imagem da mulher preta de múltiplas maneiras. É um corpo que (literalmente) arde de desejo, e esse mesmo corpo deseja ascender socialmente, deseja novos espaços de trabalho, deseja reunir sentimentos igualmente novos, sem divisas. Investe nos limites do prazer explorando a exposição do corpo, ao mesmo tempo onde se prepara uma próxima fase do debate profissional. Isso faz com que a própria personagem já nasça histórica, plena de um tempo que parece estar ainda em vias de chegar; esse tempo é rasgado por Simone.
Independente da cor, a representação de uma liberação sexual de caráter significativo também coloca Regra 34 em lugar especial, pouco ou nada explorado. Mas o que não escandaliza graficamente, deveria espantar narrativamente de maneira positiva. A sala de aula e debates que Simone e seus companheiros de faculdade frequentam, é repleta de mulheres e homens pretos. Logo, mais importante do que o close na vagina de Simone, é a sua aceitação enquanto profissional em uma área onde ainda os pretos são vistos mais como réus; o filme abraça e celebra essa diversidade. O roteiro escrito a oito mãos nem precisava enfatizar essa particularidade, porque ela salta aos olhos – uma mulher preta decide o que fazer com o próprio presente e com o próprio passado, e isso em muitos lugares ainda é artigo de luxo.
Não é uma polêmica rala que está em cena na narrativa; na verdade, o filme despolemiza qualquer que seja o arranjo inicial de percepção. Não há a intenção de provocar ou taxar ninguém, mas de mostrar os resultados de ações afirmativas para o indivíduo final, criando nele a capacidade de conduzir os desejos mais recônditos. Aos poucos, Regra 34 provoca e é provocado; Simone tem opiniões fortes acerca da maior parte dos temas. É incisiva em seu lugar. Não somente a personagem tem coragem absurda, como o filme que a abriga sabe sobre o que falar, e quais onças cutucar; o faz com tanta determinação, é tão enfático em sua fala, que percebemos uma onda disposta a derrubar esse filme tão fascinante quanto bem-vindo.
Como há uma disposição literal de reconfigurar todos os signos que já se apresentaram como antiquados, Regra 34 apresenta novas demandas de amor e afeto, ao não criar barreiras ou estranhamentos na hora de reerguer suas certezas. Quando Simone se aproxima de uma tendência arriscada de redescobrir a vida e o prazer, o filme se conecta ao gigantesco Um Estranho no Lago para refletir sobre o quão perto do fogo chegamos na hora de redescobrir algo tão primordial quanto o amor próprio. É como a sedução do abismo, do qual não temos como fugir em qualquer que seja a nossa versão. Na margem de se perceber capaz de um futuro mais autônomo emocionalmente, Simone (em interpretação estelar de Sol Miranda) se apaixona pelo precipício, e em ato de bravura – diferente do plano final do longa de Alain Guiraudie – avança decidida por sua presa. Enfim, a mulher do fim do mundo.
Um grande momento
Simone desaba após a taça quebrada