Crítica | Festival

Jamex e o Fim do Medo

Busca alucinante

(Jamex e o Fim do Medo , BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Ramon Coutinho
  • Roteiro: Ramon Coutinho
  • Elenco: Jamex, Marcus Curvelo, Neire Santana, Alana do Amor Divino, Vitor Silva Rios, Caio Ramos
  • Duração: 75 minutos

Toda vez que o espectador achar que os códigos apresentados em Jamex e o Fim do Medo já foram devidamente assimilados, uma nova porção do que é visto estará prestes a se metamorfosear na tela, transformando constantemente a experiência coletiva. E assim voltamos a um estado de descoberta contínua, reassimilando os signos do caos apresentados. Assistido no Festival Lumen em sua edição primeira, existe uma rara comunhão entre o que é visto na tela e quem absorve as imagens. Nada é muito claro em cena na estreia em longas de Ramon Coutinho, um curta metragista que dirigiu filmes como Ritual Pam Pam Pam Gaivotas ou O Que Fazemos com os Braços (diz que não existe a imediata vontade de conferir tais filmes?), mas essa estranheza não está definida por hermetismo, mas pelo inusitado. As perguntas mais frequentes: o que veremos a seguir?, onde tal obra pretende desembocar?, o que o cinema brasileiro ainda é capaz? 

De vigor inegável, Jamex e o Fim do Medo é uma das produções mais curiosas recentes e isso não é um indicativo de uma experimentação vazia ou repetitiva. Coutinho não respeita o que é constituído como tradicional no cinema – ainda bem. Ao invés de paternalizar o espectador, ele decide provocá-lo com as armas que o espectador conhece, o humor principalmente. O resultado não é identificável em suas curvas, mas é absolutamente irresistível em seu formato e provocações, já que trata-se de uma ideia catártica de apresentação. Uma cartilha de apresentação violenta a partir dos pontos onde toca, mesmo que tais acessos sejam alcançados através de uma zona inteligível do humor, um dos mais eficazes condutores de uma versão desconhecida de reação ao medo. 

Jamex é um artista plástico em uma cidade, Salvadolores, que assumiu sua porção insana e assustadora em um futuro apocalíptico. O medo propriamente dito não se esgota porque o título diz que assim deveria ser, muito pelo contrário, é um lugar infestado de possibilidades reais de temer o pior. Na ânsia de ver seu trabalho finalmente discutido e reverberado, Jamex não estará apenas em curso do risco constante, como também em contato com pessoas que tentam seguidamente segmentar sua existência à condições subalternas de representatividade. Vivido com intensidade por alǵuém que persiste todos os dias, Jamex e o Fim do Medo traça suas próprias anedotas visuais e narrativas (vejam o trocadilho do título) para rememorar as questões típicas da contemporaneidade. 

Coutinho disseca através de sua distopia debochada uma parte do país, tanto aquele do qual não alcançamos diretamente – a cinefilia underground, ou udigrudi – quanto um país refém do estado das coisas assustador em que nos encontramos. Ou seja, é uma receita que move tanto a situação estratégico-social que o filme pretende comunicar, quanto uma parcela de metalinguagem sob a égide do humor. O resultado disso é a comunicação farta que Jamex e o Fim do Medo consegue estabelecer com um espectador que não está conectado a essa cinematografia de guerrilha e risco, que compreende os elementos da realidade e os ressignifica para um lugar desconfortável narrativamente, por seu despudor estético e furor narrativo.

O mais urgente em Jamex e o Fim do Medo é essa radiografia da tensão pública que o filme constrói, ainda que muitas de suas proposições partam de questões particulares, afetações que desabrocham a partir do encontro com o coletivo. Após o advento da pandemia do COVID-19, algumas imaginações se prostram a partir de um encontro com o onírico, mas tudo o que o filme é, parte de uma metáfora do mundo real, a respeito de saúde pública, da síndrome do pânico e da necessidade de ‘ser alguém’. Toda a gama de personagens que passam por Jamex (e que permitem que grandes atores, como Marcus Curvelo, por exemplo, nos deem um grande momento em particular) servem para que ele se movimente na direção do caos armado em sua existência, na física e na de sonho, para tentar compreender o que ao seu redor é incompreensível. 

O resultado é essa reflexão errática em colisão com a estrutura alijante do tempo contemporâneo; nada está em seu lugar, porque herdamos o medo todos os dias. Esse estado de alerta constante está impresso não apenas no filme realizado, mas é compartilhado com uma plateia que se situa no que acontece, porque a vida real é bem pouco diferente do que se vê, só ausente dos filtros do absurdo. São eles que tiram de Jamex e o Fim do Medo sua carga trágica, deixando o descontrole e a solidão em cena disfarçadas de subversão. Jamex está só em sua jornada do herói, tentando sobreviver ao hoje nesse Depois de Horas diurno. 

Um grande momento
O diálogo com a funcionária da galeria 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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