Série em Cenas

Ruptura

Trabalho, vigilância e paranoia

(Severance, EUA, 2022)
  • Gênero: Ficção científica, suspense
  • Criador: Dan Erickson
  • Elenco: Adam Scott, Britt Lower, John Turturro, Zach Cherry, Christopher Walken, Patricia Arquette, Tramell Tillman
  • Duração: 50 minutos

Um sentimento de descontentamento geral com os rumos que o mundo segue parece ser termo pacificado nos dias de hoje, não importando o campo ideológico com o qual o descontentado se identifica. Da esquerda à direita, a frustração é geral. “O velho mundo está morrendo e um novo se debate para nascer: agora é o tempo dos monstros”, diz o meme. Não foram poucas as tentativas, na cultura pop, de capturar esse espírito de época (o tal Zeitgeist), mas nenhuma parece tê-lo feito, nos últimos anos, com tanta maturidade quanto a nova série da Apple TV+ (por mais irônico que isso soe). O grande mérito de Ruptura (do original Severance) é justamente abordar a distopia atual a partir da esfera trabalhista e dos processos paranoicos de dominação psicopolítica que dela derivam. Mas vamos aos poucos. 

Imagine que você odeie seu trabalho. Agora imagine também que uma empresa trilionária te apresente a solução: um chip cerebral que divide seu Eu em dois. Um Eu do trabalho, e um Eu da vida. Ambos completamente alheios à realidade um do outro, ou seja, o seu Eu do trabalho não tem nenhuma memória do mundo fora do escritório, se tem filhos, se é casado, onde mora, para qual time de futebol torce. O trabalhador ideal, sem memória, sem ideologia. Nada. Já o seu Eu da vida não teria nenhuma lembrança do Eu do trabalho. Sequer saberia com o quê trabalha nem lembraria de seus colegas de ofício. Suas memórias do trabalho e da sua vida pessoal foram cirurgicamente divididas. Essa é a premissa da série criada por Dan Erickson. Complexo, né? E a coisa só aumenta. 

Ruptura
AppleTV+

As consequências do procedimento de ruptura, como é chamada a instalação do chip, são muito mais vastas do que parecem ser de primeira. E é aí que mora a genialidade da série. Do ponto de vista conceitual, a escolha desse recorte trabalhista desencadeia comentários relevantes, atuais e, diga-se, bastante sofisticados. A série parece capturar perfeitamente a essência de uma sociedade de controle. Vigilância e alienação absolutas, migalhas de gratificação (apenas o suficiente pra te fazer funcionar, como um rato no laboratório de Pavlov). Capitalismo total. O trabalhador completamente arrancado de sua identidade e de seu poder de agência. Ao menos, esse era o plano. 

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Já do ponto de vista da estrutura narrativa, a existência dos dois mundos (o do trabalho e o fora dele) permite que a série faça um jogo narrativo que às vezes lembra o melhor de Lost: faz com que você se pergunte quem aquelas pessoas naquele escritório bizarro são no mundo real. Quem são seus duplos? Como foram parar ali? Por que se submeteram ao procedimento de ruptura? Seguindo os princípios de uma boa série de mistério, (como Lost inegavelmente fez nas primeiras duas temporadas), Ruptura não para de te arremessar dúvidas e peças de um quebra-cabeças. E, pelo que vimos na primeira temporada, não parece ser um quebra-cabeças qualquer (uma segunda temporada acaba de ser aprovada. Espero não me arrepender de escrever isso).

Ruptura
AppleTV+

O protagonista da série é Mark S., interpretado pelo excelente Adam Scott. Assim como todos os funcionários da Lumon Industries, empresa misteriosa responsável pelo procedimento de ruptura, Mark S. não tem memória nem sobrenome. Apenas segue cegamente sua rotina kafkiana no departamento de Refinamento de Macrodados. Mark S. e seus companheiros de departamento são fiéis seguidores dos mandamentos de Kier, fundador da Lumon e figura religiosa no ambiente da empresa (pois é, os fundadores são adorados como divindades, nada que passe muito longe das gigantes do Vale do Silício).

Além disso, nem Mark S. nem nenhum de seus colegas entende perfeitamente o trabalho que realizam dia após dia. Separar números em pastas de acordo com o sentimento que eles despertam. Se o conjunto de números for assustador, vão para a pasta dos números assustadores. Se forem números engraçados, vão para a pasta dos engraçados. Isso é o refinamento de macrodados. É tudo muito surrealista, e provoca riso. Ainda mais quando nos damos conta de que são eles, os dados, que gerem todas as esferas da vida contemporânea (inclusive roteiros de séries e filmes). O conflito é disparado pelo sumiço de um funcionário e pela chegada de uma substituta no departamento. 

Seis dos 9 episódios da primeira temporada são dirigidos por Ben Stiller, que carrega um ótimo portfólio de diretor. Meu preferido é Reality Bites (1994). Até para alguém que acompanha a carreira de direção de Stiller, os resultados que alcançou em Ruptura surpreendem. Provou-se um diretor maduro, capaz de lidar e fazer florescer projetos de naturezas completamente distintas. Os demais três episódios (dirigidos com excelência), são assinados pela irlandesa Aoife McArdle. Quanto às atuações, são todas grandiosas, mas dou destaque para as interpretações de Adam Scott, Tramell Tillman, Britt Lower e do grande John Turturro, cujo personagem é dono de um dos mais impressionantes arcos que já vi na televisão. Em alguns momentos, a interpretação de Patricia Arquette me tirou um pouco da cena. 

Ruptura
AppleTV+

Não é possível deixar de falar, ainda, da direção de arte de Jeremy Hindle e Angelica Borrero. Impecável. Criaram uma distinção temporal entre o mundo do escritório e o fora dele. No escritório, é como se estivéssemos em um bunker do período da guerra-fria. Por mais futurísticos que pareçam os conceitos, nada é digital, o analógico reina. Fora de lá, um mundo digital, mas ainda assim anacrônico. Nada que capture melhor a falta de identidade da contemporaneidade do que essa mistura dos diferentes tempos. Dancinhas do TikTok e ameaças nucleares russas coexistem perfeitamente, tal como o disco de vinil e o Spotify, ou a alta do petróleo e o metaverso. Elementos de um passado contextualmente distante (anos 1970, 80), que já deveriam estar superados, dividem época com promessas de um futuro que parece nunca chegar. Como se estivéssemos em looping. É difícil desvendar em que período a série realmente se passa, prova de que Hindle e Borrero tiveram no mais desafiador dos objetivos da direção de arte: criar um mundo. 

Roteiro enigmático e inteligente, personagens cativantes e visual elegante. A abertura também é fenomenal. Dava pra falar muito mais, mas a série verdadeiramente fala por si. É o tipo de produto que gera teorias de fãs na internet e cria elevado grau de expectativa para as próximas temporadas. Já vejo Ruptura como a próxima grande série (e não sou o único, a série vem gerando enorme buzz na internet). A responsabilidade nas mãos dos criadores, agora, é altíssima.

Um grande momento
O teatro de máscaras erótico

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Marcus Benjamin Figueredo

Marcus Benjamin Figueredo é corintiano, cineasta e jornalista, filho da UnB. Também é pesquisador e já atuou como montador de clipes musicais, produtor, curador e membro do júri em festivais de cinema universitário e roteiro. Gosta de sinuca.
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