Crítica | FestivalMostra SP

Sem Cabeça

Mais um Irã construído na tensão

(Bisar, IRI, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Kaveh Sajjadi
  • Roteiro: Payam Larian, Kaveh Sajjadi, Sadegh Koshhal
  • Elenco: Elham Korda, Mehdi Koushki, Roya Teimourian, Kazem Sayahi, Iraj Shahzadi
  • Duração: 93 minutos

Alguns códigos do que o cinema iraniano acostumou a entregar ao país há 25 anos atrás já foram há muito tempo superados; era a fase onde “as criancinhas perdem coisas”, que iam de peixinho dourado (O Balão Branco) a sapatos (Filhos do Paraíso), passando por cadernos (Onde Fica a Casa do meu Amigo?) e até a visão (A Cor do Paraíso), todos girando em torno de conceitos temáticos distintos mas contando com a benção do público graças a uma inocência ligada ao universo infantil. Ainda que essa cinematografia sempre tenha contado com experimentação narrativa e estética oriunda de cineastas como Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf e Jafar Panahi, essas duas vertentes caminhavam por trilhos diferentes rumo a ideias metafóricas para o desenvolvimento de seus argumentos, observando seu entorno pelo viés da simbologia. 

Uma nova geração parece ter surgido junto ao aparecimento de Asghar Farhadi e sua posterior universalização. Com filmes como A Separação, esse novo grupo agora discute suas ideias sob um caráter naturalista, como esse novo Sem Cabeça. Dirigido por Kaveh Sajjadi, que foi diretor de segunda unidade de um filme de Farhadi, O Apartamento, percebemos toda a influência desse cinema iraniano mais pessoal e menos metafórico, ainda que utilize muitos símbolos para registrar suas ideias, como um bom cinema imaginativo que de fato a produção do Irã o é; na tradição desse cinema mais palpável, o diretor entrega seu segundo filme em zona de segurança. 

Essa segurança nem sempre é sinal de conforto, muito pelo contrário – ou melhor, existem aqueles casos onde conforto demais acaba prejudicando e gerando futuramente mais incômodo, não é mesmo? Algumas decisões de Sajjadi, por melhores que sejam ou até mesmo mais acertadas, soam como repetição de intenção. Temos um casal em crise arraigada, que será eclodida pela doença do cachorro de estimação, onde aos poucos (bem aos poucos mesmo) vamos compreendendo as origens gerais das enfermidades, tanto físicas quanto comportamentais. Esse jogo narrativo, se não necessariamente tem algo de requentado, também não é algo surpreendente, principalmente pela forma que é filmado. 

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O plano que abre Sem Cabeça acaba se mostrando rapidamente como algoz do próprio projeto, que não tem duração extensa mas que acaba, dentro das limitações do seu exíguo espaço (o interior de um carro) evoluindo pouco, nos remete a uma produção romena recente, Sieranevada de Cristi Puiu, mas que diferente de lá, onde funciona como ponto de partida para algo maior, aqui se concentra mais da metade do filme – eventualmente o casal protagonista sai do espaço, indo parar em clínicas veterinárias, casa da sogra, ou um galpão assustador, mas que em ato contínuo, acaba por retornar àquele lugar de pouca interação imagética; filmar as costas, os perfis, a visão frontal, provocando algum cansaço imagético.

Esse cansaço também advém do fato de que, narrativamente, Sem Cabeça corre em círculos. A estrutura gira em torno de perguntas que são feitas, não são respondidas, a dúvida volta para o interlocutor que retoma o ciclo que não pára de girar ao redor de si. No meio disso, inserções que entendemos gradativamente se tratar da visão do próprio animal, testemunha de uma cena crucial para o entendimento do conflito. Se a ideia no papel parece interessante, no material apresentado se mostra cafona e deslocada dentro do projeto, um deslize dentro de uma produção que se imaginava bem menos ambiciosa, e o melhor seria continuar assim. 

Mas Sajjadi teve um bom professor e, ao mesmo tempo em que entrega esses resultados menores, também consegue planos cheios de imaginação, como o do conjunto de espelho onde a protagonista se olha e em cada um revela um aspecto diferente; se por um ângulo ela está ferida, em outro ela está pronta para ferir, ou toda a sequência envolvendo o galpão onde o casal leva o pequenino Aquiles, de profunda carga emocional, provavelmente o ponto alto de Sem Cabeça. Vale a pena colocar fichas em mais um diretor iraniano com um futuro encaminhado; mesmo que a princípio pareça aquém dos seus conterrâneos, o placar final ainda adquire um lugar de imersão possível, onde o jogo cênico consegue se criar.

Um grande momento
Aquiles se mostra.

[44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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