- Gênero: Drama
- Direção: Josephine Decker
- Roteiro: Sarah Gubbins
- Elenco: Elisabeth Moss, Michael Stuhlbarg, Odessa Young, Logan Lerman
- Duração: 107 minutos
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Jovem casal chega até uma casa antiga, habitada por um outro casal excêntrico de burgueses intelectuais, que os tornam reféns de suas ambições se aproveitando para sugar um pouco da juventude e alegria de viver – em especial da mulher. A premissa aterrorizante faz jus a um filme inspirado na vida e obra de Shirley Jackson, a mestra idolatrada por autores como Neil Gaiman e Stephen King. Após A Madeline da Madeline, um dos mais instigantes filmes da Mostra 2019, Josephine Decker retorna com sua visão feminista de um encontro entre criadora e criatura em Shirley.
O que acontece com todas as garotas perdidas?
Elas enlouquecem…
Apelidada de Virginia Werewoolf, às voltas com as dores de uma vida de sofrimentos domésticos – o marido Stanley Hyman, crítico literário, a maltratava, talvez por inveja e ela sofria de agorafobia – Shirley encontrou refúgio nas suas histórias assombradas com isso se tornando autora de algumas das mais edificantes e comoventes narrativas de terror, como “A Assombração da Casa da Colina“. Elisabeth “Lizzie” Moss mais uma vez entrega uma atuação acima da média, depois de O Homem Invisível e Her Smell, fazendo de sua Shirley Jackson uma visão diabólica ao mesmo tempo que terna, sendo capaz de acolher a outra ao mesmo tempo em que a estapeia na cara seguidas vezes. Odessa Young faz uma dobradinha sensual e realmente crível com Lizzie, interpretando a “pequena esposa” e personagem principal da obra que Shirley está tentando escrever, “Hangsaman“.
Decker, que também é atriz e artista visual, constrói um filme mais classicista, mas nem por isso despido de sua assinatura estilística, com um apuro visual e discurso afiado, nada simplório sobre irmandade e o aprisionamento emocional das mulheres. Sua colaboração com a roteirista Sarah Gubbins produz faísca, já que é algo muito difícil representar visualmente o trabalho criativo de um personagem-escritor como ressaltou o produtor Martin Scorsese em uma conversa com a cineasta que está no You Tube.
Permeando por voices overs que são tão sutilmente costurados na narrativa e parecem diálogos entre Shirley e sua personagem, o filme vai aclimatando a história de Paula – a mulher desaparecida que inspira a protagonista de “Hangsaman” – e a cruzando com a de Rose, perdida entre as investidas da escritora e o desinteresse do marido. Decker ainda contou para Scorsese que quis imprimir no filme toda a jornada da feitura de um livro, da importância da pesquisa, da falta de inspiração e como todos os percalços vão afetando a autora. Shirley está performando seus lados claros e escuros enquanto janta, se digladia na máquina de escrever, fuma o primeiro cigarro do dia/noite ainda na cama ou quando sofre pelo contato com o mundo exterior e com a sociedade.
Em super close ups, câmera oblíquas e uma gramática audiovisual que remete a Gritos e Sussurros em dados momentos, bergmaniana pois explorando a intersecção entre a psique feminina e os efeitos da sociedade sobre a auto estima delas, Shirley abarca a força da poética de Shirley Jackson, para quem as narrativas fantasmagóricas são em realidade, histórias de amor. “O Morro dos Ventos Uivantes“, Rebecca e tantos outros romances góticos não a deixam em desalento. E Decker faz de seu filme também um ensaio sobre o amor lésbico ou, ao menos, a força criativa do desejo com um quê de sororidade. O design de produção, os adereços e o espaço da casa em si formulam um espectro daquilo que Shirley considera como terreno fértil para seus pesadelos se manifestarem e extrair deles suas ideias mais fulgurantes – afinal “apenas pessoas simplórias vivem em meio a limpeza”. A imundície do ambiente orbita então semioticamente na mis-en-scène de Shirley, que deve aí ser indicado na temporada de prêmios também em categorias técnicas e guildas de diretores de arte.
No jogo de dualidades, o roteiro de Gubbins adaptado do livro de Susan Scarf Merrell se mescla à direção arguta de Decker, entregando em Shirley um história “amplamente fictícia”, mas que transborda para além do cinema padrão com a atmosfera de filme de suspense, sim, mas que guarda um drama sensorial sobre a dor de parir uma obra artística (com os momentos de “As Horas” dedicados à Woolf, sendo uma possível inspiração), sofrendo abusos psicológicos do marido metido a ‘terapeuta’ – Michael Stuhlbarg, maravilhoso – e se libertando das amarras patriarcais.
Não à toa Hyman, que não a considerava capaz de escrever tanto sem surtar, ao findar a leitura do romance a chama de “horrivelmente talentosa noiva” em alusão a outra grande do gênero, Mary Shelley, que foi sucessivamente considerada incapaz. Shirley se atira no precipício, mergulha de corpo e alma no enlace entre sua personagem-título, sua musa inspiradora e seus demônios. Com a chegada dos créditos finais, automaticamente se justifica a existência desse estudo sobre Shirley Jackson, sobre o que era nos anos 50 e o que é ainda hoje, ser mulher e artista.
Na biografia Shirley Jackson: A Rather Haunted Life, Ruth Franklin se refere a autora como alguém que “representou a história secreta das mulheres americanas de sua época”.
Um grande momento
As pernas que se tocam, as mãos, as sutilezas do desejo e do laço formado.