Crítica | Festival

O Grande Movimento

O corpo cobra

(El Gran Movimiento, BOL, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Kiro Russo
  • Roteiro: Kiro Russo
  • Elenco: Julio Cesar Ticoa, Max Bautista Uchasara, Francisa Arce de Aro, Israel Hurtado, Gustavo Milán
  • Duração: 85 minutos

‘O Grande Movimento’ abre com um plano óbvio, mas que funciona bastante. O formigueiro humano que forma toda cidade é filmado do alto, sem espaço para identificação pessoal. Ao invés disso, o filme abre o jogo com as idiossincrasias dos espaços comuns a todos, seus sons, suas contradições. É de uma beleza tão profunda que fica difícil para analisar com distanciamento, ou seja, se prendendo para não se deixar levar pela extrema beleza estética da produção. Essa é uma apresentação que não somente impressiona pela feitura da mesma, como aquilo ali já faz parte de uma construção narrativa maior do que o visto, complexificando as muitas imagens até o cúmulo do saturamento de seu propósito. Se isso é digno de crítica particular, o filme avança até onde pode ir… e resolve ir além, mesmo com o risco de superfaturar o tema. 

O filme é o segundo longa-metragem do diretor Kiro Russo, vencedor do prêmio de direção da Mostra Orizzonti, do Festival de Veneza 2021, e o homenageado pela Mostra Foco do Olhar de Cinema deste ano. A estrutura que ele cria ajuda na unificação de seu roteiro, que une essa super utilização de elementos do Estado para, aos poucos, situar a relação das pessoas com esse espaço urbano, uma refletindo a falência do outro. A saída, para o enredo, é o caos, é com essa chave que a direção joga. Estejamos falando sobre a mecânica de uma cidade ou sobre o colapso social sobre o indivíduo, a desestruturação de seus elementos é o mote. O diretor captura de sua Bolívia essa tendência ao fantástico para elencar as suas múltiplas referências e extrair imagens que conversam entre si, e delas com a própria arte. 

É um terreno de tratamento meticuloso, fértil de ideias, e muito amplo em sua criação. O trabalho entrelaçado de roteiro com mise-en-scene está em constante mutação estética, empregando suas qualidades para interpretar seus diferentes interesses narrativos. Há uma gana de contextualizar suas intenções, e Russo não esgarça suas qualidades, embora as evidencie até o limite. Como contrapondo a situação periférica dos mineiros – talvez a mais baixa casta social, porque metaforicamente sobrevive do que é produzido abaixo da terra – ao elevar seus corpos até o teleférico do país, em comentários sobre a classe dominante. Essa fricção das partes de seu tecido social é tão sutil que o filme consegue se vestir para todo o seu discurso de maneira a preservar esse delicadíssimo choque de realidades. 

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Aos poucos, percebemos que sua própria condição narrativa é a do choque, ao desenvolver uma nova classe operante discursiva, que determina uma oposição à cidade e ao concreto. Um de seus protagonista é Elder, homem febril que procura subsistir em La Paz indo atrás de colocações cada vez mais subalternas. Russo não os paternaliza, colocando seu protagonista em vias das mais radicais expressões de liberdade ante o massacre promovido pelo Capital. Ora estão flagrados pelo ópio do povo (o esporte), ora extravasam suas ausências na dança, o trio de trabalhadores nunca está em comiseração contínua, que só é explicitada quando da inexplicável doença de Elder. É nesse momento que seu outro pólo, o curandeiro que vive na floresta, se coloca na produção como uma resposta à vida extenuante de uma busca que não cessa. 

Russo vai ligando esses pontos ruidosos de forma orgânica, indo da concretude da massa urbana prestes a ruir até o solo de sagrada criação da floresta. Ou quando sequencia as luzes estroboscópicas de uma pista de dança ao flagelo seguinte de Elder, em condição cada vez mais marginal. A premiação que o acolheu faz sentido, porque seu périplo de imagens em cena é nunca menos do que impressionante, e não apenas representa a criação de esquetes contínuas para apresentar sua tese. A entrada em cena da senhora que se apresenta sempre como uma mãe coletiva é plena de satisfação, quando a câmera vai em ‘travelling’ em direções contraditórias para induzir o ponto à reflexão. Além da inteligência estética, tudo que seu diretor cria é de atordoante beleza e significado. 

O cinema de inspiração fantástica vai sendo cozinhado de maneira branda, até que Russo explode na cara do espectador os teclados típicos de inspiração ‘carpenteriana’ para musicar sua “dança da morte”, recheando seus zumbis sociais dos passos de Michael Jackson, e colocar na mesma malha todos os desgarrados. Estão finalmente em cena tudo o que é abaixo do olhar, na zona da periferia, e todos esses seres adoecidos dançam por espaço. Se não tivesse feito todo sentido antes dali, ‘O Grande Movimento’ chega enfim ao momento onde suas cores enfeitiçam a tela, e o público segue hipnotizado dali, com seu clamor a respeito da opressão e a seguinte cobrança dos mesmos por um espaço de visibilidade.

Um grande momento
A dança

[11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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