Crítica | Cinema

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

Laços de família

(Everything Everywhere All at Once, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Aventura
  • Direção: Dan Kwan, Daniel Scheinert
  • Roteiro: Dan Kwan, Daniel Scheinert
  • Elenco: Michelle Yeoh, Stephanie Chu, Ke Huy Quan, James Hong, Jamie Lee Curtis, Tallie Medel
  • Duração: 139 minutos

Existe um desdobramento que se esconde por trás da consciência que adquirimos ao longo da vida, das lembranças boas e ruins inevitáveis à qualquer existência, do caminho tortuoso que seguimos, sem nos importar com desenvolvimentos que possam quebrar uma estrutura reconhecível. É uma espécie de poder supremo nos dado pela imaginação, que permite que, por uma fração de segundos, traiamos a própria vida em busca de uma saída menos confortável, porém mais realizadora. Estar de posse da sua saga particular não é necessariamente o equivalente a endossá-las, mas muitas vezes acessar o cômodo lugar da indiferença. Rotina e destino, dois mecanismos que não precisamos manipular, mas que são utilizados com alguma frequência com o intuito de aprisionar o próximo. Parece confuso e meio disperso? Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é uma experiência radical de imersão em algo nunca visto: a realização do sonho.

Sonho, enquanto matéria produzida durante o sono e desejo de realização com certa dificuldade de concretização. Cabem os dois registros dentro de universo aqui permitido – e a palavra universo poucas vezes foi tão acertadamente definidora de algo. Há uma gama percebida infinita nos moldes da narrativa, de matizes perceptíveis no que se propõe aqui; na verdade, o filme se apropria disso para brincar, e tornar farsa, um conceito de risco. O que está na teoria é uma ideia de infinito, que o roteiro sabe falsear como tal, mesmo sendo bastante restritivo na prática. Mas com sinceridade, isso é uma resolução menor dentro do escopo que o filme apresenta, que é muito mais emocional do que qualquer sinopse ousa apresentar. É muito curioso perceber o trilho de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo indo para um lugar, quando sua conexão vai para outro.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo tempo
Allyson Riggs/A24

Não se trata de enganar o espectador, mas exatamente de encorpar seu caldo com uma matéria prima que não pede para adensar sua atmosfera. Os Daniels (Kwan e Scheinert) já tinham dividido a cinefilia com uma outra dose de radicalismo narrativo em Um Cadáver para Sobreviver, que partia de uma bizarrice – a amizade entre dois homens, um vivo e um morto, e tudo que pode ser gerado de desconfortável desse encontro – para gerar uma trama das mais sensíveis e até prosaicas. Esse novo filme é um fenômeno de bilheteria em todos os sentidos, e esse abraço irrestrito popular talvez corrobore essa vocação de seus diretores, em não tentar esconder o tanto de profundo que pode existir nos mais mundanos sentimentos e situação, quando as vestimos de fantasia.

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Evelyn, a protagonista magistralmente vivida por Michelle Yeoh (O Tigre e o Dragão), está à beira de um ataque de nervos, fazendo assim se abrir para ela um(ns) mundo(s) de possibilidades. Essa é a grande sacada do roteiro também assinado pelos Daniels, mais uma vez: eles utilizam o espetáculo para redefinir organizações muito básicas do ser humano. No pacote vendido para o público através do marketing, uma joia do cinema de aventura é passo a passo substituída por um jogo metafórico tão básico quanto profundo a respeito do livre arbítrio, de como conduzimos o resultado das encruzilhadas da existência, e de como a ideia do “e se…” não acrescenta nada à nossa vida, se não nos permitir também uma reflexão interna sobre como conduzir o futuro.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
Allyson Riggs/A24

Mas nada é negado a Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, nem a anarquia produzida por uma indústria preocupada em entreter, nem o olhar compenetrado para mais um acerto de contas familiar que inclua conflito geracional e aproveitamento cotidiano de uma sororidade ainda em pé de construção. Esse acordo tão banal é feito por seus criadores com um público que mastiga os mesmos padrões – os filmes são uma coisa ou outra. Kwan e Scheinert têm a ousadia de pretender ocupar todos os espaços, e isso sem nunca deixar de mostrar uma face de cinema de autor em uma dieta completa. Assim como em seu longa anterior, o tratamento dos diretores ao seu campo imagético não é só irrepreensível, como coerente com o que é desenvolvido em toda sua duração.

É inteligente como a montagem de Paul Rodgers organiza um caos em cena, mas que é milimetricamente cronometrado para que tal caos soe natural. A vida de Evelyn se multiplica a cada novo bloco de acontecimentos, e a inspirada edição precisa abraçar o que o roteiro precisa cumprir: administrar com clareza os impulsos destrutivos de cada universo em si. É graças aos talentosos superlativos de Rodgers, dos Daniels mas principalmente de Yeoh, que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo se torna tão significativo e arriscado. Qualquer mínima falta de cuidado poderia o projeto a perder, essa parábola sobre os contínuos atos de reinvenção particular e diário, que nós precisamos aprender. Referendado pela força gravitacional que o filme assume pra si, atraindo todos os olhos na sua realização, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é uma caixa de surpresas.

Um grande momento
O primeiro reconhecimento dos próprios poderes

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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