Crítica | Catálogo

Um Completo Desconhecido

Diamante e ferrugem

Para contar a sua históra de Bob Dylan, Mangold escolhe um recorte específico da trajetória do compositor: os anos que vão de Minnesota até Newport, entre 1961 e 1965. É nesse período que o cantor se forma como artista, começa a incomodar plateias, encontra suas referências e constrói a persona que o mundo aprenderia a decifrar aos poucos. O filme parte do ponto em que ele ainda é um músico tentando se inserir na cena folk e o acompanha até a transformação que o afasta da tradição e o leva ao som elétrico.

Timothée Chalamet entrega um Dylan contido, sem caricatura. Ele evita copiar o tom de voz ou exagerar no gestual, e prefere construir o personagem pela energia e pelo desconforto. Há momentos em que essa contenção funciona muito bem, especialmente nos diálogos mais íntimos, mas em alguns pontos passa a depender do figurino e da reconstituição de época para sustentar a presença de seu personagem. É uma interpretação sólida, mas que não chega a revelar novas camadas do personagem.

Embora tenha sua força na música, muito do filme vem das relações amorosas do cantor, em especial seu envolvimento com a também cantora Joan Baez. Mais do que romance, a relação é um espelho que revela um lado menos público de Dylan. Baez é amiga, parceira e amante, incentivadora e provocadora. A presença de Monica Barbaro dá peso à personagem e ajuda a criar equilíbrio nas cenas, sem reduzir Baez a um papel secundário ou à condição de musa. A dinâmica que se estabelece expõe fissuras na imagem do ídolo. Não só ali, mas muito ali, ele se mostra humano e imperfeito. Como ferrugem e diamante, da canção da compositora, ele brilha, mas também apodrece.

O roteiro de Um Completo Desconhecido percorre passagens já conhecidas, mas evita uma cronologia rígida. A relação de Dylan com a cena do Village, a visita a Woody Guthrie e os bastidores de Newport são mostrados como parte de um fluxo que combina música, convívio e observação. A narrativa não é disruptiva, mas sabe costurar as etapas sem perder ritmo.

Visualmente, o filme se apoia em uma reconstituição de época competente. A fotografia usa luzes mais quentes nos palcos e tons frios nos bastidores, reforçando a tensão entre o Dylan público e o privado. Não há invenção estética marcante, mas há consistência. E, assim como o personagem, o filme parece preferir solidez a experimentalismo.

Correto e coeso, o longa não busca reinventar o ícone e nem a forma de retratá-lo. É um recorte limpo, com bons momentos e um trabalho cuidadoso nas relações que moldaram o artista. A transformação está lá, mas de maneira contida, mantendo tanto o personagem quanto a narrativa em um território seguro. Um Completo Desconhecido é elegante, mas prefere preservar o eco do mito a cavar o abismo que o criou.

Um grande momento
Dylan ouve Baez pela primeira vez

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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