Crítica | Festival

Chumbo

O lugar de onde se fala

(Chumbo , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Severino Neto
  • Roteiro: Severino Neto
  • Duração: 69 minutos

Não é de cara que Chumbo, filme na competição do Cine PE 2023, mostra seus reais predicados. Em primeiro lugar, somos apresentados não somente a Severina, como também a um modelo de documentário que contempla muito do que desejamos assistir no molde de um material documental. O filme segue uma de suas protagonistas de uma maneira inesperada, filmando um pouco de sua casa, abrindo sua intimidade, ao mesmo tempo em que a imagem granulada revela pontos desconcertantes, da personagem e de suas ideias. Nesse primeiro momento há algum fascínio, no tanto que Severina é uma personagem que impressiona, e em como parece que o espectador é convidado a olhar por um buraco de fechadura, com os planos sendo conseguidos através de frestas. 

O filme de Severino Neto é confrontado por uma força feminina forte, sendo a figura masculina apenas apresentada durante uma breve animação no meio da narrativa. Não há vez para os homens dentro daquele universo de mulheres valentes, maiores que o sofrer, e que ainda encontram resistência para manter-se em ritmo diferente do que seus relatos poderiam mostrar. A cada novo olhar sobre aquela estrutura escravagista moderna, que ainda se mantém atuante séculos após promulgado o seu fim, Chumbo revela novos detalhes sobre o processo que está sendo filmado, e adentra em uma narrativa de cada vez mais crueldade, principalmente psicológica. São as vozes de cada uma em cena que elevam o material filmado, ainda que exista uma busca estética cênica. 

É interessante e irônico que o material humano masculino represente a ausência em Chumbo, justamente um filme comendador por um ‘pequeno exército’ de homens. Por melhor que fosse uma decisão acertada dessa história ser contada por suas próprias figuras, com suas escolhas e vivências, não fica estampada na tela qualquer tipo de roubo de lugar de fala. O que vemos, na verdade, talvez represente um excesso de confiança no que está sendo dito, que corre em paralelo aos desejos de Neto, em sua tentativa de legar ao projeto mais do que as tradicionais ‘cabeças falantes’. No entanto, é necessário perceber quando uma ideia, ainda que quadrada, produziria mais efeito ao aspecto narrativo, e acho que esse caso caberia aqui. 

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Neto, Marcos Maia e Alexandre Rogoski (que são a totalidade da tripulação de Chumbo) querem deixar sua marca registrada na tela, e essa decisão nem sempre deixa suas personagens respirar. Isso eleva o filme, mas nem sempre o concede liberdade narrativa, tendo em vista que frequentemente existe uma ideia de plano que avança na frente de quem está contando a história. Tal qual Menino 23, em alguns momentos a situação relatada se torna menor do que a forma de contar, e isso empalidece o filme em algum ou outro momento. Suas protagonistas ainda tem capacidade de sobra para não deixar suas imagens evadirem da tela com frequência, e seguem empregando potência na produção. 

Apenas pelo fato de não conseguir cristalizar suas intenções diante de material verbal tão impressionante, é que Chumbo não eleva seu poder. Inclusive sendo ambíguo com o olhar àquelas mulheres, que declaram os horrores da analogia à escravidão que passaram, para em seguida sentir falta do mesmo horror, cabe nessa contradição matéria de sobra onde podemos ampliar as questões do filme. Mas quando Neto resolve filmar os sorrisos de cada uma, sua cultura, seu linguajar, suas motivações pessoais e até profissionais, o filme liberta não apenas quem fala, mas também o lugar de onde fala. São espaços físicos que se prestam à ressignificação constante, e isso é de uma força que a produção observa e se debruça em reverência. Às mulheres de Chumbo, todo nossa admiração. 

Um grande momento

A fala de Josi, retificando a contradição

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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