(Vermelha, BRA, 2019)
“Nunca viajo sem o meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário
Oscar Wilde
para ler no comboio”.
No cotidiano, naquelas repetições diárias do dia a dia, estão escondidas coisas incríveis. O diretor Getúlio Ribeiro sabe disso e encontra na rotina de sua família um ambiente fértil para a construção de seu primeiro longa-metragem, Vermelha, filme goiano que foi o grande vencedor 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Vermelha acompanha Gaúcho e sua família em situações banais: o conserto do telhado, o buscar de um tronco, a recuperação de uma cirurgia, o encontro casual, a cobrança de uma dívida. Em um exercício de sofisticação disfarçado de simplicidade, os eventos encontram distinções que os engrandecem. O filme consegue realizar aquele extraordinário escondido no banal que custa a ser percebido.
O domínio de Ribeiro sobre o ambiente é fundamental para o resultado. Trabalhando com sua família, na casa onde cresceu, ele sabe muito bem quais são os movimentos naturais dos eventos, sabe onde suas proposições vão levar e quais propostas — ficcionais ou não — funcionarão com cada uma daquelas pessoas. E é interessante que não sejam as pessoas seu principal objetivo, mas a relação entre elas.
Vermelha, aquela que dá nome ao filme, é a cadela da família e participa daquele cotidiano. Xodó de Gaúcho, é o seu lugar de espectadora, como aqueles que acompanham o filme, que ressalta esse observar das relações que ali estão formuladas.
A dupla de amigos Gaúcho e Beto é a que mais se destaca entre os personagens, mas é a amizade dos dois que está sendo observada. E é assim com todos os outros membros da família, até com aqueles que menos aparecem, mas marcam da mesma maneira. E é interessante que nem sempre haja obviedade. A frase “coisa da sua mãe” no inusitado destino do tronco, por exemplo, denota toda a força daquela mulher dentro daquele espaço e é sensacional encontrar isso em um filme bastante masculino.
Também chama atenção em Vermelha a variedade com que Ribeiro constrói seus eventos: planos longos acompanham conversas sobre coisas triviais, como as medidas de “alqueiros” e hectares ou a gastronomia espanhola; a alternância, numa exposição granulada interessante, marca os momentos de ação, como na noite da cobrança da dívida; planos mais fechados estão nos momentos mais emotivos, como na hora de pedir desculpas; luz e sombra destacam o encontro furtivo. Há, portanto, toda uma construção de gramática cinematográfica inventiva e atraente.
Há, ainda, e aqui vale destacar o trabalho de montagem de Luciano Evangelista, a precisão no costurar de todas essas determinações e escolhas em um filme que em nenhum momento opta pelo comum, e a observância ao tempo dos acontecimentos, algo que se traduz no alcançar do humor mais genuíno, sem que haja qualquer gratuidade.
Se, na partida, o filme escolhe dois percursos para trilhar o seu caminho: a cobrança e o tronco, o que se revela no final está muito mais interessado no passeio por aquele cotidiano, sem necessariamente ter percorrido o caminho escolhido, mas acompanhando situações e momentos que são ainda mais instigantes. Naquela simplicidade conhecida e agora compartilhada, Vermelha expõe essas pérolas de absurdo no banal, de extraordinário no trivial, algo que passa muito tempo ali, mas ninguém tem tempo de parar para olhar.
Um Grande Momento:
“Não tô com medo de você, não.”
[22ª Mostra de Tiradentes]