Crítica | Streaming e VoD

Você Não Estará Só

Uma por todas, todas por uma

(You Won't be Alone, AUS, RUN, SER, 2022)
Nota  
  • Gênero: Suspense, Drama
  • Direção: Goran Stolevski
  • Roteiro: Goran Stolevski
  • Elenco: Anamaria Marinca, Noomi Rapace, Alice Englert, Sara Klimoska, Arta Dobroshi, Félix Maritaud, Carloto Cotta
  • Duração: 105 minutos

De vez em quando aparecem aqueles estreantes assustadores, que conduzem um primeiro longa-metragem com tanta segurança e exímio cuidado que chegamos a nos perguntar se não estamos diante de algum tipo de prodígio. Goran Stolevski tem 37 anos, sua origem é macedônia-australiana, e ano passado lançou esse Você Não Estará Só em Sundance, sendo tão elogiado que o filme acabou por se tornar o candidato da Austrália ao Oscar de filme internacional desse ano. Nada disso transpassa a sensação de assistir ao filme e ter a exata noção de entrar em uma ambientação diferente, em um recorte distinto do tempo, e de atravessar alguns tratamentos sobre algo que, em tese, nem ele e nem eu deveríamos ter autoridade para contar ou falar: a maternidade, a sororidade, o feminino. 

Estreia do streaming do Telecine, infelizmente essa produção cheia de textura não conheceu o caminho dos nossos cinemas, e agora está à disposição aos assinantes. Antes tarde que nunca, e talvez a pressa dos nossos dias seja inimiga mesmo do que está sendo tratado aqui, com a parcimônia e destreza que os temas percorrem, e se tornam cada vez mais amplificados aqui. Há de encontrar o tempo necessário que o filme demanda dentro de cada espectador, mas digo isso especificamente porque já observei alguns “toques” sobre um possível caráter hermético do filme; particularmente, não acho. Não precisamos de mais do que delicadeza para adentrar no ritmo que o filme constrói, na intenção de olhar para o que está sendo exposto ali. 

Na superfície, Você Não Estará Só é uma transposição de lendas milenares da Macedônia, quase como sobre a criação de mitos que atravessam o feminino para “justificar” práticas machistas inconcebíveis. Poderia ser um desses programas quase educativos, que seriam contados às crianças como uma história de bruxas, mas que nem tenta esconder os alvos que quer atingir. Não vou afirmar categoricamente (até porque, repito, ele é um homem), mas Stolevski se interessa pela construção de diretrizes da formação desse ser feminino, o tanto de perseguição, violência, punição que se concentra – não apenas na ancestralidade – nesse corpo, à qual o machismo tenta empurrar na direção do sacrifício, com constância quase ininterrupta. 

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Você Não Estará Só é sobre a formação e a configuração desse feminino, sobre a hereditariedade das dores e dos percalços, e sobre como não muda muita coisa, de comunidade para comunidade, de idade para idade, ou de corpo para corpo. A exploração é igualmente bem sucedida em todos os flancos, e sempre há de levar a um moto perpétuo de massacre e derramamento de sangue. É curioso como existe uma personagem que interligue os tempos e existências do filme na figura dessa perpetuadora, que aconselha a personagem a fechar-se para encerrar os ciclos de morte – ou, ela mesma se apropriar desses signos e decidi-los. A partir desse encontro, o corpo doado à essa figura histórica se rebela e cria sua própria narrativa, a partir das necessidades que surgem a cada nova “encarnação”.

Sempre que a personagem mutante do filme imagina ter encontrado paz, a violência à sua volta – proporcionada pelo Homem ou pelo Destino – vem lhe trazer o questionamento: existe uma maneira de fugir em absoluto da dor? O rosto de Carloto Cotta diante do corpo da criança, imaginando a necessidade de um novo ciclo, é uma resposta possível ao que o filme suscita. É quando entra enfim em cena a mais clichê das respostas, e embora o seja, tudo faz sentido quando o amor chega. É ele, a compreensão, a empatia, o desvelo que também o acompanham, o responsável por encerrar eras de tormenta, e encontrar saída diante do horror. Parece minimalista, mas também essa questão é transformada e revista, enviesando o discurso para além do sentimento tradicional romântico. Preciso deixar também uma colocação a respeito da assombrosa presença de Noomi Rapace aqui; a estrela de Caranguejo Negro e eterna Lisbeth Salander tem algo, aqui, parecido com a “atuação de uma vida”, de embasbacar com seu misto de intensidades, todas muito bem dosadas.

A fotografia de Matthew Chuang contribui para lançar Você Não Estará Só como uma experiência de imersão em uma temática que não engloba 50% da população mundial. É como uma tentativa de entendimento sobre o que sabemos que nos foi vendido em clichês, aqui sendo tratados em um binômio do terror e da fantasia. Nada está na tela suavizado, mas talvez seja uma forma também de retratar a dubiedade que é cobrada da mulher, força e suavidade; não precisa ser assim, nem uma coisa nem outra. A alegoria aqui só perde um pouco da força quando não somos apresentados às consequências dos eventos, que ficam pelo caminho, mas a palavra que marca é a da reconstrução que dia a dia elas precisam alcançar. Uma nova mulher, todos os dias. 

Um grande momento
As unhas da mãe e as unhas do bebê

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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