Há filmes que nascem com um legado, mesmo antes da primeira imagem. Wicked é um deles. Carrega a aura de um filme consolidado que se tornou clássico indispensável e um musical consagrado; o peso de um livro que atravessou gerações e que encontrou nas telas e teatro sua forma mais expansiva. Mas não é só memória que o move. Há algo vivo ali, algo que pulsa no presente, mesmo envolto em cenário encantado. Um tipo de vibração que não depende apenas de nostalgia, mas da forma como o passado ressoa no agora.
Oz continua a ser um lugar de invenção. É fantasia, sim, mas não mais uma fantasia escapista. O que se vê ali está marcado pelas ausências, pelas distorções da ordem, pelas feridas expostas sob o verniz do encantamento. A estranheza de Elphaba não é apenas cor. É rejeição, exclusão, violência disfarçada de tradição. O mundo que a rejeita é o mesmo que se diz civilizado e progressista. A trama não se esconde da política que atravessa os corpos. Pelo contrário, ela se ancora nela. O bullying, a vigilância sobre o diferente, a perseguição disfarçada de normalidade não são ficção, e talvez nunca tenham sido. Quando a escola se torna um campo de humilhação e professores viram alvo de censura, a metáfora se dilui. O que resta é a realidade travestida de magia.
É nesse terreno que se firmam Cynthia Erivo e Ariana Grande. Duas presenças que ocupam espaço com firmeza, sem sobreposição. Uma dança entre contraste e a complemento. Cynthia faz de Elphaba um corpo resistente, não domesticável, mas profundamente afetado. Sua presença em cena transborda antes da primeira fala. Ariana, por outro lado, encarna Glinda com uma dissimulação que esconde camadas. Há nela um jogo entre o riso e o cálculo, entre o encantamento e a conveniência. A escolha da duas por cantar ao vivo não é vaidade técnica, é decisão ética. Elas estão ali por inteiro, sem filtros, em performances cheias de emoção.
Visualmente, Wicked parece dividido entre o desejo de encantamento e a vontade de dizer algo mais denso. A direção de arte e o figurino entendem o espetáculo. Não têm medo do brilho, nem do excesso. São elementos que acolhem a grandiosidade da fábula sem trair o desconforto que ela provoca. As cores são marcadas e os volumes e profundidades, intencionais. Há beleza ali, mas uma beleza que não apaga a tensão.
A fotografia, no entanto, hesita. Busca atmosferas, mas entrega apagamentos. Existe uma tentativa clara –exageradamente clara, diga-se – de criar luzes e sombras simbólicas, de trabalhar com luz estourada como conceito e de imprimir nas imagens uma sensação de liberdade, prisão ou sonho. O conceito, porém, se perde na execução. Algumas cenas são comprometidas pelo exagero, parecendo ora extravasadas, ora abafadas.
Mesmo assim, há força. O conto de fadas ainda é uma lente, mas o que se vê por ela mudou. O filme entende que magia também é uma forma de resistência, que cantar pode ser mais do que performance, pode ser denúncia. E quando o espelho da fantasia reflete os contornos do mundo real, algo se move. Wicked não se contenta em ser apenas retorno. Ele volta com propósito. E, em alguns momentos, acerta o tom de um futuro que ainda quer ser possível. Não é só o reencontro com Oz. É a lembrança de que até os mundos imaginários carregam feridas do mundo real. Talvez, justamente por isso, mereçam ser revisitados, pois aquilo que está estabelecido sempre merece ser desafiado.
Um grande momento
A dança no baile


