Crítica | Festival

Wim Wenders, Desperado

Desperado, incauto, encegueirado

(Wim Wenders, Desperado, ALE, 2020)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Eric Friedler, Campino
  • Roteiro: Eric Friedler, Campino, Silke Schütze
  • Duração: 120 minutos

Sem pressa, Wim Wenders caminha pelo deserto de Terlingua no coração do oeste norte-americano. Mimetiza os passos daquele que seguramente é um dos personagens mais famosos que representou audiovisualmente: Travis, o pai e marido imerso numa melancolia quase palpável que é vivido por Harry Dean Staton em Paris, Texas. Cruzando depoimentos memoráveis, passagens de Wim por cenários e paisagens onde filmou suas criações artísticas, as imagens de arquivo os documentaristas Eric Friedler e Campino constituem em Wim Wenders, Desperado um retrato apaixonante do indefectível dono das armações mais coloridas e bonitas de óculos de grau – e de uma mente repleta de uma fúria impaciente.

O título é explanado na fala do ator Patrick Bauchau (de O Estado Das Coisas), para quem Wim é um ‘desperado’, incauto – aqui poderia também utilizar a expressão tipicamente nortista/nordestina “encegueirado” para dar conta desse estado de espírito apaixonado, quase obsessivo. É uma definição para gente que pula do céu e que se arrisca como o cineasta alemão em diversas fases da sua carreira: como quando esteve em rota de colisão com Francis Ford Copolla; quando aos 18 anos deixou Dusseldorf para viver num estúdio de 20 metros quadrados em Paris; quando após vender seu primeiro filme em Cannes resolveu desbravar os EUA; quando seguiu insistindo em fazer filmes que tivessem algo de seus mesmo perante uma indústria que não permite respiros e espaços para a genialidade fluir.

Win Wenders, Desperado

O vazio do espaço, do céu e especialmente, o existencial motivou Wim a fazer filmes. E foi no cinema norte americano que ele se nutriu, correlacionando o visual inóspito da cidade natal – com várias fábricas e construções abandonadas no pós guerra – ao velho oeste; completou a educação audiovisual assistindo a todos os exemplares da filmografia de Anthony Mann e John Ford na cinemateca francesa. Ele rememora a juventude e a ânsia que o motivou a dar a largada com O Medo Do Goleiro na Hora do Pênalti numa conversa com Werner Herzog. Os dois representantes do jovem, novo cinema alemão presenteiam o público com alguns dos momentos mais divertidos dessa cinebiografia. “Eu não vi Tokyo-Ga e nem Quarto 666. Não gosto de ser filmado e nem me assistir do lado oposto da câmera”, confessou Herzog ao amigo, lembrando que havia desligado a TV e retirado os sapatos para responder a capciosa pergunta, filmado apenas por Wim e a fotógrafa Agnès Godard, que o cineasta fez aos entrevistados do filme produzido em Cannes – “Seria o cinema uma arte em extinção?”

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A próxima sequência do documentário Desperado, que encerrou a segunda etapa do festival É Tudo Verdade 2020, já dá conta de respondê-la. Wenders está de volta ao Texas, rodando o curta sobre o pintor Edward Hopper – uma grande influência na fase norte-americana e até antes, em Alice Nas Cidades. Wenders manifesta sua frustração com a produção e com o timing das produções contemporâneas onde ele precisa filmar seguindo o roteiro que foi aprovado, financiado. Mas, como observa a esposa Donata (fotógrafa e assistente nesse curta) ele quer provar que ainda consegue fazer filmes seus portanto persiste.

Win Wenders, Desperado

“Wim se coloca como um dos elementos do seu filme”, aponta Francis Ford Coppola, o grande homenageado no filme-exorcismo metalinguístico O Estado Das Coisas, que fala da relação tempestuosa entre direitor e produtor que acaba perecendo no final e deixa o filme incompleto. O noir Hammer, única colaboração entre dois dos mais incensados autores do cinema, foi uma produção da American Zootrope de Coppola. O filme deixou Wim Wenders num estado de frustração e descrença que só foi alterado durante a feitura de Paris, Texas. Um filme que parte de algumas frases do ator e dramaturgo Sam Shepard foi um salto de fé do alemão e de toda a sua equipe, em especial o grande amigo e colaborador Robby Müller, fotógrafo holandês.

Ry Cooder – em imagens de arquivo – e a Cineasta Claire Denis (que foi assistente de direção de Wim) recontam o clima de tensão e angústia que perpassou todas as etapas da produção. Claire – de quem só se houve a voz – ilustra imagens do Rio Grande, cenário onde foi desafiada por Wim a provar um ponto de vista atravessando a nado. Com espelhos duplos – comprados com o resquício final da verba de produção – na cena da cabine envidraçada onde a Jane de Nastassja Kinski reencontra Travis, Wim e Tobby nos brindam com uma decupagem genial composta por atuações tão acertadas que geram uma imagem congelada além do espaço-tempo fílmico daquele que talvez seja o diálogo entre amantes (ou ex-amantes) mais precioso de uma era. Desperado se rende ao gênio mas não se exime de apontar os percalços, indefinições, as andanças de Wim pelas redondezas buscando respiros no roteiro e sentido para o que estava fazendo – tudo de custoso que levou Paris, Texas à consagração com a Palma de Ouro em 1984.

Win Wenders, Desperado

É como elabora a amiga Patti Smith: Wenders faz filmes sobre coisas simples mas incorporando uma certa magia, usando elementos surrealistas e dialogando com passado e presente para refletir sobre o futuro. Talvez o olhar arguto de fotógrafo, partilhado com ela em projetos como “Polaroids e Instant Stories”, livros poéticos-visuais, explicite essa impressão. Ou a imersão cognitiva, lírica provocada pela projeção de cenas de Asas do Desejo, Paris, Texas, O Amigo Americano e Buena Vista Social Club no Grand Palais em Paris. Concebida por Wim Wenders, a exposição com os frames numa dimensão 16:9 preenche o sentido em se fazer Desperado. Em ter a partilha da concepção artística, dos sonhos, frustrações, desejos e passos que trouxeram Wim Wenders até esse momento.

A exemplo de A Vida de Um Artista, documentário de 2017 que investiga a subjetividade de David Lynch e seu processo criativo, Desperado tenta empreender um road movie pelo fluxo de consciência e impressões que Wenders detém sobre o próprio ofício. “Fazer filmes é um trabalho radical, às vezes é tudo ou nada” – e mostrando muito, nos permitindo a aproximação, com toda a simpatia leonina que detém, o cineasta alemão que criou clássicos modernos do cinema nos leva para passear, contando uma história de vida dedicada a traduzir seus anseios, capturar o espírito de uma Alemanha florescente e das profundezas áridas da América dos cowboys em queda livre, de beleza sublime e catartica.

Ao fim, vale o conselho de Herzog: “autorais e pessoais, longe dos enfadonhos que todos os outros fizeram nos anos 70 nesse país, vejam os filmes do Wim Wenders!”

Um grande momento
No deserto, onde tudo se inicia e se encerra

[25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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