- Gênero: Documentário
- Direção: Eric Friedler, Campino
- Roteiro: Eric Friedler, Campino, Silke Schütze
- Duração: 120 minutos
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Sem pressa, Wim Wenders caminha pelo deserto de Terlingua no coração do oeste norte-americano. Mimetiza os passos daquele que seguramente é um dos personagens mais famosos que representou audiovisualmente: Travis, o pai e marido imerso numa melancolia quase palpável que é vivido por Harry Dean Staton em Paris, Texas. Cruzando depoimentos memoráveis, passagens de Wim por cenários e paisagens onde filmou suas criações artísticas, as imagens de arquivo os documentaristas Eric Friedler e Campino constituem em Wim Wenders, Desperado um retrato apaixonante do indefectível dono das armações mais coloridas e bonitas de óculos de grau – e de uma mente repleta de uma fúria impaciente.
O título é explanado na fala do ator Patrick Bauchau (de O Estado Das Coisas), para quem Wim é um ‘desperado’, incauto – aqui poderia também utilizar a expressão tipicamente nortista/nordestina “encegueirado” para dar conta desse estado de espírito apaixonado, quase obsessivo. É uma definição para gente que pula do céu e que se arrisca como o cineasta alemão em diversas fases da sua carreira: como quando esteve em rota de colisão com Francis Ford Copolla; quando aos 18 anos deixou Dusseldorf para viver num estúdio de 20 metros quadrados em Paris; quando após vender seu primeiro filme em Cannes resolveu desbravar os EUA; quando seguiu insistindo em fazer filmes que tivessem algo de seus mesmo perante uma indústria que não permite respiros e espaços para a genialidade fluir.
O vazio do espaço, do céu e especialmente, o existencial motivou Wim a fazer filmes. E foi no cinema norte americano que ele se nutriu, correlacionando o visual inóspito da cidade natal – com várias fábricas e construções abandonadas no pós guerra – ao velho oeste; completou a educação audiovisual assistindo a todos os exemplares da filmografia de Anthony Mann e John Ford na cinemateca francesa. Ele rememora a juventude e a ânsia que o motivou a dar a largada com O Medo Do Goleiro na Hora do Pênalti numa conversa com Werner Herzog. Os dois representantes do jovem, novo cinema alemão presenteiam o público com alguns dos momentos mais divertidos dessa cinebiografia. “Eu não vi Tokyo-Ga e nem Quarto 666. Não gosto de ser filmado e nem me assistir do lado oposto da câmera”, confessou Herzog ao amigo, lembrando que havia desligado a TV e retirado os sapatos para responder a capciosa pergunta, filmado apenas por Wim e a fotógrafa Agnès Godard, que o cineasta fez aos entrevistados do filme produzido em Cannes – “Seria o cinema uma arte em extinção?”
A próxima sequência do documentário Desperado, que encerrou a segunda etapa do festival É Tudo Verdade 2020, já dá conta de respondê-la. Wenders está de volta ao Texas, rodando o curta sobre o pintor Edward Hopper – uma grande influência na fase norte-americana e até antes, em Alice Nas Cidades. Wenders manifesta sua frustração com a produção e com o timing das produções contemporâneas onde ele precisa filmar seguindo o roteiro que foi aprovado, financiado. Mas, como observa a esposa Donata (fotógrafa e assistente nesse curta) ele quer provar que ainda consegue fazer filmes seus portanto persiste.
“Wim se coloca como um dos elementos do seu filme”, aponta Francis Ford Coppola, o grande homenageado no filme-exorcismo metalinguístico O Estado Das Coisas, que fala da relação tempestuosa entre direitor e produtor que acaba perecendo no final e deixa o filme incompleto. O noir Hammer, única colaboração entre dois dos mais incensados autores do cinema, foi uma produção da American Zootrope de Coppola. O filme deixou Wim Wenders num estado de frustração e descrença que só foi alterado durante a feitura de Paris, Texas. Um filme que parte de algumas frases do ator e dramaturgo Sam Shepard foi um salto de fé do alemão e de toda a sua equipe, em especial o grande amigo e colaborador Robby Müller, fotógrafo holandês.
Ry Cooder – em imagens de arquivo – e a Cineasta Claire Denis (que foi assistente de direção de Wim) recontam o clima de tensão e angústia que perpassou todas as etapas da produção. Claire – de quem só se houve a voz – ilustra imagens do Rio Grande, cenário onde foi desafiada por Wim a provar um ponto de vista atravessando a nado. Com espelhos duplos – comprados com o resquício final da verba de produção – na cena da cabine envidraçada onde a Jane de Nastassja Kinski reencontra Travis, Wim e Tobby nos brindam com uma decupagem genial composta por atuações tão acertadas que geram uma imagem congelada além do espaço-tempo fílmico daquele que talvez seja o diálogo entre amantes (ou ex-amantes) mais precioso de uma era. Desperado se rende ao gênio mas não se exime de apontar os percalços, indefinições, as andanças de Wim pelas redondezas buscando respiros no roteiro e sentido para o que estava fazendo – tudo de custoso que levou Paris, Texas à consagração com a Palma de Ouro em 1984.
É como elabora a amiga Patti Smith: Wenders faz filmes sobre coisas simples mas incorporando uma certa magia, usando elementos surrealistas e dialogando com passado e presente para refletir sobre o futuro. Talvez o olhar arguto de fotógrafo, partilhado com ela em projetos como “Polaroids e Instant Stories”, livros poéticos-visuais, explicite essa impressão. Ou a imersão cognitiva, lírica provocada pela projeção de cenas de Asas do Desejo, Paris, Texas, O Amigo Americano e Buena Vista Social Club no Grand Palais em Paris. Concebida por Wim Wenders, a exposição com os frames numa dimensão 16:9 preenche o sentido em se fazer Desperado. Em ter a partilha da concepção artística, dos sonhos, frustrações, desejos e passos que trouxeram Wim Wenders até esse momento.
A exemplo de A Vida de Um Artista, documentário de 2017 que investiga a subjetividade de David Lynch e seu processo criativo, Desperado tenta empreender um road movie pelo fluxo de consciência e impressões que Wenders detém sobre o próprio ofício. “Fazer filmes é um trabalho radical, às vezes é tudo ou nada” – e mostrando muito, nos permitindo a aproximação, com toda a simpatia leonina que detém, o cineasta alemão que criou clássicos modernos do cinema nos leva para passear, contando uma história de vida dedicada a traduzir seus anseios, capturar o espírito de uma Alemanha florescente e das profundezas áridas da América dos cowboys em queda livre, de beleza sublime e catartica.
Ao fim, vale o conselho de Herzog: “autorais e pessoais, longe dos enfadonhos que todos os outros fizeram nos anos 70 nesse país, vejam os filmes do Wim Wenders!”
Um grande momento
No deserto, onde tudo se inicia e se encerra
[25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]