Crítica | Festival

Queen Kelly

Reconstruindo uma história

(Queen Kelly, EUA, 1929)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Erich von Stroheim
  • Roteiro: Erich von Stroheim
  • Elenco: Gloria Swanson, Seena Owen, Walter Byron, Wilhelm vonBrincken, Madge Hunt, Wilson Benge, Sidney Bracey
  • Duração: 105 minutos

A produção de Queen Kelly carrega o peso de uma promessa não cumprida, sabe que algo maior existia e, mesmo assim, tem de viver com seus fragmentos. Gloria Swanson, estrela da era silenciosa, e Joseph P. Kennedy, seu financiador, apostaram em von Stroheim como criador capaz de dar forma a uma fábula de poder, desejo e humilhação. O resultado é um filme que vive entre reinos europeus e bordéis africanos, mas que permanece também como documento da decadência de um sistema cinematográfico prestes a mudar.

O aspecto mais fascinante de Queen Kelly, no entanto, não está apenas na história de uma órfã de convento transformada em “rainha” de um bordel após uma paixão interrompida, mas na maneira como von Stroheim filma o colapso das aparências. A câmera é obcecada pelos detalhes: pisos xadrez, escadas monumentais e sombras que rastejam. Ele pinta a realeza como ruína, o príncipe como fuga e a heroína como vítima. A estética que passeia entre paisagens se converte em metáfora de deslocamento, tanto de classe quanto de sexualidade e de identidade.

A restauração mais recente, em 4K, com materiais inéditos, intertítulos novos e uma reconstrução do que poderia ter sido, tenta devolver ao filme aquilo que o estúdio arrancou. Essa versão não é o que von Stroheim realizou, porque isso está perdido; é o mais próximo que chegaremos dela. E talvez seja isso que torna a experiência tão interessante. Assistir a Queen Kelly hoje é aceitar a falha como parte da forma. Nunca vimos o filme completo, mas reconhecemos muita ambição, muita erosão, muito espetáculo falho. A técnica do restauro – e o próprio gesto de recuperá-lo – fortalece o filme, mas também o expõe como ferida.

Nesta ferida o filme encontra seu lugar. A própria condição de inacabado obriga o espectador a viver meio-fora, meio-dentro da experiência. Gloria Swanson está no convento, há o golpe, há a humilhação, mas não há fechamento. E talvez o fechamento fosse menos importante do que o que o filme tentava dizer: privilégio vira ruína, Kelly vira mercadoria e império vira bordel. Nesse sentido, a produção torna-se documento e mito ao mesmo tempo, quando algo extrapola a forma para entrar no imaginário como lacuna.

Mas nem tudo resiste sem tensão. Ver Queen Kelly hoje exige alto grau de tolerância à fratura. A reconstrução aponta para o que poderia ter sido, pois só temos aquilo que sobrou e 1h40 de material não cobre todo o arco narrativo e termina em um final improvisado e quase anticlimático. De maneira ambivalente, de um lado está o deslumbre com os figurinos, as cenografias e as performances; e, por outro, a decepção com o que foi omitido, o que não pôde ser filmado, ou pior, o que foi filmado e não foi visto.

Queen Kelly é uma imagem de arte incompleta, onde se pode ver a grandeza interrompida, a obsessão em 1.33 : 1, a briga entre cinema de autor e poder de estúdio. Porém, também é a fragilidade da glória, o abismo entre a promessa e a história. A restauração não cura essa ferida, a torna visível. Ver esse filme hoje é estar diante de uma obra que abraça seu inacabado para dizer algo sobre cinema, poder e falha.

Cinéfilos precisam viver a experiência não apenas como narrativa. Vale a sensação de andar por corredores sem fim, acompanhar o príncipe que nunca volta, a rainha que se delicia na crueldade, a mulher que tenta resistir. Queen Kelly não responde todas as suas perguntas e talvez porque sua própria produção tenha se recusado a respondê-las. E aí está a sua força.

Reconstrução da nova cópia de “Queen Kelly”: Dennis Doros e Amy Heller, Milestone Film & Video.
Materiais em nitrato e stills, Cortesia de The George Eastman Museum. Estabilização, timing e limpeza 4K digital: Metropolis Post, NYC. Colorista: Jason
Crump. Artista de restauração digital: Ian Bostick. Supervisão: Milestone Films.

Um grande momento
O primeiro encontro

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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