(Gospod postoi, imeto i' e Petrunija, MKD, BEL, FRA, CRO, SLV, 2019)
Há filmes que pedem por um texto, menos distanciado, mais intrometido. Quando é o caso, como em Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia, tenho que pedir licença a você, leitor, para usar este espaço para isso. Não que eu não vá falar de técnica. Até vou. Mas vai ser bem pouquinho…
Enquadramentos diferentes estão ali no longa de Teona Strugar Mitevska para destacar a dona do filme, Petúnia, a mulher que chegará para expor aquilo que já se sabe há muito tempo, mas se finge não saber. É como se o universo em volta dela fosse irrelevante e somente suas reações interessassem à câmera. A diretora joga com elementos cênicos para brincar com essa aproximação da personagem e estabelece um vínculo que sobrevive até mesmo após a aproximação de uma estética mais tradicional.
Petúnia tem uma entrevista de emprego, mas antes de se levantar tem que ouvir da manhã uma mantilha de pequenas agressões disfarçadas de conselhos. Elas falam de seu corpo, de seu cabelo, do modo que se veste, se comporta e sempre de maneira muito fortemente associada ao gênero. Ou seja, nada que qualquer mulher viva hoje em dia, principalmente as acima do peso, já não tenham ouvido de alguém.
É depois da primeira dose de machismo que ela sai para a entrevista, fazendo uma parada antes no quiosque onde sua melhor amiga trabalha. A personagem secundária é importante porque faz um contraponto a toda a estrutura que circunda Petúnia. Também é com ela que há uma inversão de papéis interessante para a temática, quando a protagonista começa a julgar a amiga, o que aponta justamente que não é só no exterior que o problema existe.
É incrível como uma vida de exposição a certos discursos – e podemos constatar isso bem nesse universo invertido que vivemos hoje no Brasil – faz com que eles se introjetem dentro de nós. Por mais que não o percebamos, por vezes nos pegamos replicando absurdos. Mesmo que o caminho que decidimos trilhar seja para um lado diferente, ainda temos algumas conivências, condescendências e, pior, crenças que não nos deixam seguir adiante.
Voltando a Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia, chega a hora da entrevista. Mais uma dose alta de machismo, dada sem nenhuma parcimônia. Ver na tela a agressão e o assédio do gerente é incômodo, porque situações assim são mesmo incômodas, mas também por saber que, mais uma vez, a maioria das mulheres já passou por aquilo pelo menos uma vez na vida. Se ninguém para e pensa que há algo muito errado nisso, não há mesmo o que fazer.
Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia segue na ultraexposição daquilo que já é conhecido mas segue sendo ignorado. Por vezes se excede, como nos diálogos óbvios da jornalista, mas encontra no humor fino um ambiente seguro para se desenvolver. Até tem os seus momentos comprometidos pela introjeção que eu citei aí em cima quando tenta criar romances desnecessários, mas sua força está mesmo na mensagem.
Quando Petúnia, ao voltar para casa, vê a busca pela cruz sagrada e resolve pular no rio, competindo com outros homens, ela dá um basta em toda a estrutura descrita. Aquele salto na água é um salto para romper a superfície social e escancarar o tratamento que as mulheres seguem tendo até os dias de hoje. Porque houve avanços, indubitavelmente, mas muita coisa simplesmente não mudou.
Várias tradições continuam enxergando os homens como os únicos capazes de realizar determinadas tarefas; discursos de 1950 ainda são repetidos, mas por pessoas que nasceram em 1990; mulheres continuam ganhando menos do que os homens e ainda são vistas, por uma maioria esmagadora, como objetos que estão no mundo para satisfazer os desejos do homem. Porém, ao mesmo tempo, há várias petúnias por aí e gritando pela autoria de seus feitos, há uma conscientização irreversível, um olhar para isso, como o filme faz de maneira escancarada, estimulando novos saltos em busca do que quer que seja.
Um Grande Momento:
O pulo.
[43ª Mostra de São Paulo]