O longa Doce Vingança (em inglês I Spit on Your Grave – eu cuspo na sua cova), refilmagem de A Vingança de Jennifer é o primeiro de três já lançados com o mesmo título e conta a história de Jennifer (Sarah Butler), escritora que aluga uma cabana isolada para que possa se concentrar em seu novo romance. Contudo, percebendo que Jennifer está sozinha, um grupo de homens, formado por Johnny (Jeff Brandson), Stanley (Daniel Franzese), Mathew (Chad Lindberg), Andy (Rodney Eastman), e até o xerife da cidade, Storch (Andrew Howard), iniciam uma sessão interminável de terror contra a escritora, mediante abusos psicológicos e físicos.
Durante a trama, Steven R. Monroe faz com que o telespectador experimente os sentimentos mais primários do ser humano: medo, nojo e ódio, conduzindo-os tão bem que aqueles que assistem o filme realmente passam a desejar a punição severa dos algozes de Jennifer, uma vítima de torturas e estupros, que tem seu corpo e sua moral violados inúmeras vezes.
Neste sentido, a outro caminho não poderia conduzir o diretor, senão que à “doce vingança” de Jennifer, que não somente planeja uma simples punição aos seus agressores, mas os fazer sentir tudo aquilo que ela sentiu (alerta de spoiler): Johnny, que tortura a garota, é igualmente torturado, tendo parte do seu corpo mutilada e restando pendurado à morte; Stanley, que gosta de assistir e filmar as sessões de tortura e estupro, é amarrado a uma árvore e tem seus olhos parcialmente mutilados, para que seja impedido de fechá-los, mesmo quando os corvos o atacam; Andy, que torturou e lesionou Jeniffer com um bastão, é amarrado em cima de uma banheira cheia de ácido, na qual a protagonista bate com o bastão para deixar o homem desnorteado e fraco, até que ele afunde na banheira; por fim, o xerife Storch, que consumou o estupro da protagonista, fica completamente submisso com sua própria espingarda, em uma armadilha posicionada de frente para Chad, que tem uma espécie de retardo mental, mas não deixou de participar das torturas e estupros, razão pela qual foi colocado em uma posição em que sua própria decisão de se mexer causasse sua morte e de Storch.
A trama de Doce Vingança é bem desenvolvida e amarrada e o diretor consegue mexer tanto com os sentimentos do público, que enquanto a vingança ocorre, por mais que sintamos repulsa, parte de nós celebra cada um dos abusos cometidos contra os algozes e, mais ainda, cada uma de suas mortes, o que traz à tona o debate acerca da vingança, da justiça com as próprias mãos e de quais seriam os limites aplicáveis à punição de quem comete crimes hediondos.
Há uma verdadeira tentativa de demonstrar a proporcionalidade entre as punições atribuídas pela protagonista a seus agressores, na medida em que suas vidas são ceifadas, uma a uma, por meio de violações e agressões que seguem o mesmo rito daquelas aplicadas por eles quando em suas agressões contra Jennifer, proporcionalidade esta que muito lembra aquela descrita no Código de Hamurabi (conjunto de leis criadas na Mesopotâmia, por volta do século XVIII a.C., pelo rei Hamurabi, baseado na Lei de Talião, que preconizava “olho por olho, dente por dente”).
A proporcionalidade do Código é evidenciada em alguns dispositivos específicos, tais quais:
“1º – Se alguém acusa um outro, lhe imputa um sortilégio, mas não pode dar a prova disso, aquele que acusou, deverá ser morto”;
“4º – Se alguém se apresenta como testemunha por grão e dinheiro, deverá suportar a pena cominada no processo”;
“6º – Se alguém furta bens do Deus ou da Corte deverá ser morto; e mais quem recebeu dele a coisa furtada também deverá ser morto”;
“21º – Se alguém faz um buraco em uma casa, deverá diante daquele buraco ser morto e sepultado”;
“195º – Se um filho espanca seu pai se lhe deverão decepar as mãos”, dentre outros.
Contudo, com o desenvolvimento das sociedades e do Estado Democrático de Direito, verificou-se que a simples proporcionalidade das punições não garantia, necessariamente, a aplicação da pena mais justa e, inclusive, que sob a desculpa do uso da “proporcionalidade”, diversas arbitrariedades estatais estavam sendo cometidas e permitidas legalmente.
A vistas disso, desenvolveu-se melhor o conceito de proporcionalidade, para assegurar o direito de todos os cidadãos ante a aplicação das penas impostas pelo Estado, de modo que a proporcionalidade lato sensu passou a ser subdividida em três partes: adequação (a pertinência da pena aplicada: deve haver uma coerência entre o direito fundamental a ser limitado e a finalidade que a norma deseja alcançar); necessidade (deve haver o menor sacrifício possível de um direito fundamental: a medida não pode exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo, de modo que se deve aplicar o meio mais suave para punir, caso ele exista); e proporcionalidade em sentido estrito (a medida imposta deve ser a que cause mais benefícios do que prejuízos).
Diante disto, verifica-se que, havendo outras sanções mais brandas, mais adequadas e necessárias para a punição de um crime, qualquer que seja sua natureza, estas deverão ser aplicadas, garantindo-se aos indivíduos delinquentes a manutenção de seus direitos perante a mão punitiva do Estado.
Há, contudo, uma corrente no Direito que defende o Direito Penal do Inimigo, um conceito desenvolvido Günter Jakobs, que determina a aplicação de punições mais severas (ampliando os limites da proporcionalidade) para aqueles que sejam considerados os “inimigos” do Estado, de modo que estas tais punições devem ser aplicadas pelo Estado sem a observância dos direitos fundamentais dos indivíduos delinquentes, pois, ao se tornarem inimigos do Estado, imediatamente eles deixam de ser considerados “pessoas” e, portanto, deixam de ter direitos fundamentais.
A defesa do Direito Penal do Inimigo, da exclusão da proporcionalidade da pena, ou da aplicação da Lei de Talião a determinados agentes é, exatamente, o que justifica a conivência com justiça com as próprias mãos e que nos faz aplaudir a conduta da vítima que planeja a execução de seus algozes, mesmo que com requintes de crueldade.
Contudo, vale destacar, por mais que a nosso desejo por vingança grite em nossas cabeças pedindo pela punição severa e eficiente de delinquentes que cometem crimes hediondos (tal qual o estupro), admitir que penas severas e extremadas sejam tomadas contra aqueles que cometam crimes perversos abre espaços e cria precedentes para o retorno das arbitrariedades estatais e, consequentemente, para a violação direta do Estado Democrático de Direito.
Vale destacar que no Estado Democrático de Direito todos os cidadãos – até mesmo os que infringem as leis – têm seus direitos e garantias fundamentais e processuais, razão pela qual, ainda que diante do cometimento de crimes hediondos, aos criminosos deve ser garantido o devido processo legal e a aplicação das penas com a devida observância da proporcionalidade descrita em lei. Mais do que isso, neste Estado Democrático, é o Estado quem, detentor do dever de vigiar e punir, deve julgar os criminosos e atribuir-lhes suas penas, justamente para que se garanta que as vítimas ou suas famílias não cometam excessos quando da aplicação de punição dos agressores.
Portanto, a vingança da protagonista de Doce Vingança, por mais que cause uma espécie de conforto, não pode ser vista como um ato heroico, mas, ao revés, deve ser criticada e repudiada, para que atos como este não sejam reiterados e para que se garanta a integridade do Estado Democrático de Direito que, mais do que proteger os agressores, protege também as próprias vítimas, na proporção em que cria medidas que assegurem sua segurança.
Para finalizar o argumento, vale relembrar a conclusão de Raúl Zaffaroni: “A admissão jurídica do conceito de inimigo no Direito (que não seja estritamente no contexto de guerra) sempre foi lógica e historicamente o primeiro sintoma de destruição autoritária do Estado de Direito”.
Doce Vingança (I Spit on Your Grave, EUA, 2010, 108 min.)
Terror | Direção: Steven R. Monroe | Roteiro: Adam Rockoff
Elenco: Sarah Butler, Jeff Branson, Andrew Howard, Daniel Franzese, Rodney Eastman, Chad Lindberg, Tracey Walter, Mollie Milligan