13ª Emenda (13th) é um documentário dirigido por Ava DuVernay, que consiste em um compilado de entrevistas atuais e entrevistas antigas, extraídas de arquivos, feitas com ativistas, políticos, advogados e estudiosos, a respeito do racismo estrutural perpetuado nos Estados Unidos, desde a época da escravidão, fazendo uma correlação entre a escravidão, a forma que se deu sua abolição e o atual racismo e encarceramento em massa de negros norte-americanos.
O debate trazido pelo filmes é de suma importância no atual momento – em que a luta do movimento Black Lives Matters está no ápice, após a morte de George Floyd por um policial, que lhe sufocou por quase 10 minutos durante uma abordagem na porta de um mercado, nos Estados Unidos – para que nós, brancos, consigamos compreender os nossos privilégios e a forma que o racismo se perpetua em uma sociedade.
Assistindo ao documentário é possível compreender o desenvolvimento do racismo nos Estados Unidos; porque esse país ainda tem a maior população carcerária mundial; porque a população carcerária norte-americana é composta 40,2% por negros (enquanto apenas 6,5% da população norte-americana é negra); e porque 1 a cada 17 homens brancos têm a possibilidade de ser encarcerado, ao longo da vida; ao passo que 1 a cada 3 homens negros corre este risco, ainda que sejam presos equivocadamente.
Após a abolição da escravidão, milhares de famílias negras foram libertadas e os escravos, antes considerados “propriedades” dos brancos, passaram a ser declarados sujeitos de direitos, mas sem que, de fato, nenhum direito lhes tivesse sido garantido efetivamente, uma vez que não foram alfabetizados, educados, ensinados a trabalhar de maneira divergente do trabalho braçal, ou que lhes tenha sido oferecida a oportunidade de efetivar um trabalho diferente e, portanto, sempre foram mantidos à margem da sociedade branca.
Nesse contexto pós-escravocrata, foram criados tipos penais que, de forma velada, se destinavam quase exclusivamente à repressão, ao encarceramento e à exclusão dos negros da sociedade, como era o caso da vadiagem e da vagabundagem, crimes cometidos majoritariamente por negros que, sem ensino básico ou condições de trabalho, viviam nas ruas.
O encarceramento de negros tinha um objetivo específico, além da segregação racial, que era a garantia da mão de obra barata, uma vez que os presos são obrigados a trabalhar em prol do país nos Estados Unidos, e, nessa época pós-Guerra Civil, o trabalho era primordial para melhorar a economia da região sul do país.
Com o número crescente do encarceramento negro, e a imprensa retratando quase diariamente a imagem de negros sendo presos, não demorou muito para que o retrato de todo indivíduo negro fosse automaticamente atrelado à imagem de alguém sendo algemado, preso, perseguido, ou cometendo crimes, daí porque se diz que surgiu a “falsa mitologia do negro mau”, que cometia crimes contra os brancos e, por isso, precisava ser punido.
A arte foi instrumento primordial na propagação da imagem equivocada da Guerra Civil e dos negros, principalmente porque no início do desenvolvimento do cinema, surgiu o filme O Nascimento de uma Nação que, aclamado por sua “coragem” de abordar temas políticos, retratou a derrota na Guerra Civil como um verdadeiro martírio, e atrelou a imagem do negro a uma figura bruta, degradada, canibalística, animalesca e criminosa.
Os negros foram retratados pela arte como estupradores de mulheres brancas, ao passo que a Ku Klux Klan (KKK) foi representada de forma romântica e heróica, como se o clã genocida fizesse um verdadeiro trabalho social, ao caçar, matar ou mandar encarcerar os negros – considerados o mal da sociedade norte-americana.
A prova de que o filme teve fortes repercussões sociais está no fato, dentre outros, de que a própria atuação da KKK sofreu uma alteração após a estreia do longa, uma vez que não havia o costume do clã de queimar cruzes, mas depois do filme esta se tornou uma prática comum.
A interferência do filme na mentalidade do povo, portanto, é inquestionável e, consequentemente, a imagem do negro mau também foi absorvida pela população, que decidiu iniciar uma verdadeira caça aos negros, fazendo surgir, nesta época, uma onda de terrorismo e genocídio negro.
Milhares de negros foram mortos apenas por serem negros, afinal, a cor da pele era fator suficiente para que o indivíduo fosse relacionado à prática delitiva e, portanto, merecer ser penalizado pela sociedade branca, ainda que sequer houvesse, de fato, incidido em qualquer delito.
Foi, justamente, neste contexto de perseguição racial que os negros começaram a se espalhar por todos os Estados Unidos, não na busca de empregos ou melhoria de seu status social, mas sim em busca da manutenção de suas próprias vidas, ou seja, na intenção de fugir de seus algozes, os verdadeiros criminosos de uma nação que, ao invés de repudiar o racismo, a tortura, o genocídio contra grupos negros, preferiu aplaudir todos os grupos intolerantes e racistas, fundando-se na ideia de que o negro jamais poderia ser uma vítima, uma vez que tais indivíduos eram criminosos e, portanto, mereciam as punições mais severas possíveis (torturas, enforcamentos, degola, lesões corporais, entre outras).
A seguir, foram criadas leis que relegaram os negros a uma “segunda classe”, ou seja, sempre inferior aos brancos, não lhes garantindo o direito ao voto, nem o direito de ir e vir livremente, frequentando os mesmos lugares que os brancos, mas, ao revés, os segregando, ao definir que negros deveriam andar em transportes públicos separados – ou sentar-se no fundo dos ônibus; ficar hospedados em locais apartados; usar banheiros distintos, e etc.
O cenário nacional norte-americano era de total desrespeito aos negros, razão pela qual ativistas viram a necessidade de criar movimentos para a garantia de direitos civis e direitos humanos aos negros, o que, obviamente, não foi bem aceito pela maioria branca privilegiada e racista, que preferia a manutenção do status quo e o afastamento dos negros.
Naquelas circunstâncias de militância e luta para o reconhecimento e a garantia de direitos aos negros, a causa negra passou a ser vista como um atentado terrorista aos Estados Unidos, e os militantes eram retratados pela imprensa como verdadeiros criminosos, afinal, eles estavam violando as leis de segregação existentes no país.
Após inúmeras manifestações e prisões, finalmente o Ato de Direitos Civis e o Ato de Direito ao Voto foram alterados, para reconhecer que, embora a escravidão houvesse findado, os direitos dos negros jamais foram realmente garantidos e, portanto, essa garantia ocorreria dali para frente, momento no qual nasceu uma breve ideia de justiça igualitária.
O desenvolvimento da justiça igualitária, porém, não chegou a ocorrer como pretendido, porque concomitantemente ao aumento da popularidade do movimento de direitos civis, ocorreu o aumento das taxas de criminalidade da geração “baby boom” – nascidos na 2ª Guerra que, a essa altura (nos anos 70), já era adulta -, o que levou ao “encarceramento em massa”.
Não demorou para que brancos racistas correlacionassem o movimento de direitos civis ao aumento de criminalidade, dizendo que o reconhecimento de direitos aos negros era proporcional ao aumento de crimes cometidos.
Foi neste cenário que surgiu, então, o movimento de intolerância do Law and Order, que preconiza, a grosso modo, que as pessoas obedeçam e cumpram estritamente a letra fria da lei, independentemente de se o seu teor tem ou não condão racista e/ou segregatório, portanto, todo indivíduo que não se conformava com as leis ou políticas da época era criminalizado, motivo pelo qual se iniciou a perseguição de quaisquer minorias que lutavam contra o sistema, visando o reconhecimento de seus direitos básicos, daí foram efetuadas inúmeras prisões de homens e mulheres negros, de mulheres feministas e de homens e mulheres gays.
Nesta mesma conjuntura, iniciou-se a “guerra às drogas”, uma vez que o uso e o tráfico já eram considerados crimes e, portanto, seguindo as balizas do movimento “Law and Order”, deveriam ser punidos severamente. Assim, todo e qualquer tipo de uso de drogas (tanto o uso pessoal, quanto o tráfico) passou a ser tratado com intolerância pelo Estado, que lavou as mãos para tratar do problema da dependência química e do vício, uma vez que deixou de considerá-los uma questão de saúde pública e passou a prevê-los como crimes.
O número de encarcerados seguiu aumentando e, inclusive, foi exposta posteriormente a intenção da política do Law and Order e da guerra às drogas, de apenas prender e segregar negros e esquerdistas, através de suas prisões, efetivadas com fundamento em leis anti-militância e anti-drogas, porquanto os políticos sabiam que não era possível fazer uma lei anti-negros ou anti-esquerda, então criaram leis que vedassem quase tudo aquilo que os negros e a esquerda faziam à época. A intenção das leis fica evidente quando se percebe que qualquer branco rico pego com drogas recebia tratamento diferenciado daquele dado aos negros e pobres, ou aos militantes brancos de esquerda.
Isso fica ainda mais evidente quando se tem em mente que, àquela época, a comunidade negra, que sofria com a exclusão social, repressão política e crise econômica que se alastravam pelo país, passou a utilizar o crack, uma droga fácil de ser encontrada e extremamente barata, que acabou ganhando popularidade em bairros mais pobres, majoritariamente constituídos por negros, assim como a cocaína em pó ganhou popularidade nos bairros ricos e brancos.
O Congresso, mais uma vez consumando o crime de racismo, em tempo recorde criou penalidades obrigatórias para o crack, as quais eram muito mais severas do que as penalidades impostas à cocaína em pó, usufruída majoritariamente por brancos, evidenciando-se o trato diferenciado da comunidade negra e da comunidade branca, bem como a intenção de encarcerar o maior número de negros possível.
Com o passar dos anos, as políticas de criminalização e perseguição de negros se mantiveram, fazendo surgir medidas cada vez mais severas, a fim de angariar votos da população branca, tal qual o “three strikes and you’re out”, medida política de repressão ao crime, que faz alusão à expressão utilizada no jogo de beisebol, para dizer que “cometendo três faltas graves, você está fora do jogo”, ou seja, incidindo em três crimes graves, a pessoa seria condenada à prisão perpétua.
O número de negros encarcerado, portanto, pode ser diretamente relacionado ao racismo, na medida em que, por razões racistas, desde a abolição da escravidão, não foram garantidos direitos básicos aos negros, que sempre viveram objurgados e à margem da sociedade, precisando se esforçar muito mais do que qualquer branco para alcançar o mesmo local que um branco alcançaria facilmente.
Igualmente, a polícia e a sociedade olham de forma diferente para o indivíduo negro, acusando-o antes de obter qualquer prova de sua participação na consumação de um delito, sem que lhe seja garantido o direito à presunção de inocência, ao contrário do que acontece com os brancos, que, majoritariamente, respondem processos em liberdade e, como deveria ser com todos, são considerados inocentes até prova ao contrário, ao passo que negros são considerados culpados até que produzam provas de suas inocências.
Especificamente quanto aos direitos dos negros nos Estados Unidos, vislumbrando este cenário de encarceramento em massa da população negra, a conclusão que chega é a de que não é garantido ao negro o direito à presunção de inocência ou à dignidade da vida humana, já que sempre são perseguidos, abordados de forma truculenta pela polícia, acusados de crimes que não cometeram e condenados equivocadamente.
Após efetivadas suas prisões, não lhes é garantida a dignidade da pessoa humana, porque o sistema carcerário é um verdadeiro antro de violações de direitos e garantias fundamentais, como bem se retrata no documentário, ao trazer o relato da mãe de um presidiário que diz que na cela de seu filho sequer há ventilação natural, bem como ao colacionar imagens dos abusos de autoridade sofridos por um dos presos.
Dentro do sistema penitenciário, ainda, um direito básico garantido a qualquer cidadão norte-americano passa a ser violado: o direito a não ser escravizado. Isso porque a 13ª Emenda prescreve que ninguém será submetido à escravidão, salvo quando a mesma seja imposta ao indivíduo preso.
Caso retornem à sociedade, após o devido cumprimento da pena, igualmente, lhes passam a ser cerceados os direitos à dignidade da pessoa humana, à honra, a um emprego, ao voto, dentre outros, isso porque a lei norte-americana determina que o indivíduo encarcerado seja afastado de seus direitos políticos e, após solto, a nuvem do encarceramento lhe segue para sempre: todo e qualquer formulário preenchido por um norte-americano questiona sobre a existência de condenações pretéritas.
Vale destacar que no cenário norte-americano inúmeros negros são condenados por aceitarem o “plea bargain”, um acordo feito entre o defensor e o promotor de justiça, oferecido por este, que diz que “se você se considerar culpado, irá pegar uma pena mínima, mas se deixar de fazê-lo, poderá pegar a pena máxima”, o que motiva os acusados de aceitarem o acordo, ainda que sequer tenham cometido o crime, somente para garantir que não lhes seja atribuída a pena máxima.
Não cabe aqui o discurso de que “quer os seus direitos, então cumpra seus deveres”, porque aos negros nunca foram assegurados, de fato, direitos básicos, como ao devido processo legal. Inclusive, o discurso evidencia o total desconhecimento da realidade negra.
Por fim, conclui-se que é impossível falar do desenvolvimento histórico dos Estados Unidos, ou de sua política, ou de seus sistema prisional, sem regressar ao período da escravidão, onde negros não eram sujeitos de direitos e eram segregados da sociedade, afinal, ainda hoje, negros seguem não sendo sujeitos de direitos e segregados da sociedade.
(13th, EUA, 2016, 100 min.)
Documentário | Direção: Ava DuVernay | Roteiro: Ava DuVernay, Spencer Averick
Ler a crítica de Cecilia Barroso
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