Crítica | FestivalMostra SP

Valentina

(Valentina, BRA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Cássio Pereira dos Santos
  • Roteiro: Cássio Pereira dos Santos
  • Elenco: Thiessa Woinbackk, Guta Stresser, Rômulo Braga, Letícia Franco, Ronaldo Bonafro
  • Duração: 95 minutos

No ano passado a adolescência trans chegou ao cinema carregada de cores e luz. Alice Junior conquistou o público e a crítica dos festivais por onde passou com sua linguagem moderna e positividade. Valentina também fala sobre a transsexualidade na adolescência, mas escolhe o caminho mais duro e menos colorido da vida da maioria de transsexuais no país. O enredo é praticamente o mesmo: por causa do trabalho do pai/mãe as meninas precisam se mudar para uma cidade do interior e enfrentar o preconceito dos moradores. Diferentemente de Alice, Valentina não tem dinheiro, um canal no YouTube, seguidores e é bastante discreta com sua transgeneridade.

Valentina, muito bem defendida pela jovem atriz Thiessa Woinbackk, é apresentada pouco antes da mudança. Ela, ainda sem seus documentos,  está insegura com a identidade falsa que fez para entrar na matinê. “Esse era eu há cinco anos atrás”. Assim o diretor Cássio Pereira dos Santos apresenta o ponto central de seu filme, a identidade que é negada àquela menina e a tantas outras pessoas que não se reconhecem como do gênero determinado em suas certidões de nascimento. O filme transita entre o preconceito e a burocracia, e ressalta seus pontos sem obviedade.

Embora haja cor na protagonista, e isso fica muito nítido no início do filme, quando encontra as amigas e faz coisas normais para todos os adolescentes em boa parte do tempo o ambiente é retratado para oprimir essa luz individual, seja no cinza e granulado da nova cidade ou nos planos que reforçam o deslocamento da menina no ambiente. Há todo um trabalho estético de construção da contradição que expõe os sentimentos de Valentina sem que ela precise verbalizá-los.

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Valentina (2020), filme de Cássio Pereira dos Santos selecionado para a Mostra de São Paulo

O peso do que se vê vem acompanhado de detalhes tocantes, como o segurança que chega para defender a menina na boate, o olhar sempre acolhedor da mãe (Guta Stresser, muito bem no papel), ou a reação dos amigos quando ela conta que é trans. São momentos de respiro em meio a esse não-lugar quase sufocante em que a personagem se encontra, sem uma identidade para chamar de sua e em um mundo que a rejeita – e rejeitaria – independentemente disso. Além da violência explícita, não é mensurável a dor de ouvir de alguém que se ama “para não comentar com ninguém sobre sua situação”.

Poderia-se dizer que o longa de Pereira dos Santos está num lugar comum aos filmes LGBTQIA+ produzidos no Brasil. Embora haja seu aqui e ali abordagens mais leves, como é o caso de Alice Junior, a maior parte das tramas é calcada no sofrimento e no quanto é negativo assumir-se em meio a essa sociedade doente. Valentina traz isso, mas há equilíbrio nos afeto e suporte mais explícitos, nem sempre presentes em outras produções, além de um certo frescor juvenil, e aqui eu falo de revolta, enfrentamento e Duda Beat, que faz a diferença. 

Ainda que tenha alguns tropeços, clichês e pese a mão – as histórias da festa ultrapassam a necessidade para um final aquém do esperado, por exemplo -, Valentina é um filme importante não só pelo que traz aos que repelem tudo aquilo que não conhecem, mas por representar na tela pessoas a quem esse espaço sempre fora negado. Num país onde mais de 80% dos transsexuais abandonam a escola, é preciso deixar a leveza de lado justamente para que essa identificação se concretize, e traga a mudança.

Um grande momento
Mãe, filha e a diretora. 

[44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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