(Sem Seu Sangue, BRA, FRA, HOL, 2019)
A perda do primeiro amor é a espinha dorsal que serve metaforicamente para enriquecer as texturas de Sem Seu Sangue, estreia na direção de longas de Alice Furtado, exibido no Festival de Cannes do ano passado e que acaba de aportar na Netflix. É exatamente desse sentimento do qual todos nós passamos, a dor que parece lancinante e que nos parece arrebentar por dentro, o momento que o filme aborda é exatamente esse, quando o amor de Silvia e Artur é interrompido por uma tragédia, abrindo o espaço fílmico para a experimentação e observando mais profundamente os objetivos da produção, que não são os mais óbvios.
Apesar da premissa poder ser apresentada de maneira comum, o que Alice pretende com seu filme é tirar dessa base qualquer elemento frugal e mergulhar sua produção numa atmosfera lacunar que não para de se desdobrar o tempo todo. Como é assumidamente um campo de risco em que se joga, algumas decisões se saem mais acertadas que outras, mas no geral se trata de um filme inquieto que não escolhe nenhum lado das encruzilhadas onde se mete porque decide ir a todos os lugares, Alice não cansa de abrir portas e possibilidades, colocando sua estreia em lugar que já vimos antes, porém com ainda mais elementos.
A tentativa não soa tão pretensiosa quanto poderíamos imaginar porque a base do roteiro de Alice é uma história de amor disposta a vencer a mais intransponível das barreiras; com esse ponto de partida, o universo particular que o filme cria para situar sua protagonista acaba suavizado, ainda que repleto de elementos que parecem não parar de entrar em cena. No entanto, é pela melancolia que Silvia mergulha cada vez mais profundamente que o filme estabelece sua zona empática, e a partir daí seus elementos abstratos que não cessam em pedir passagem são absorvidos pelo espectador com a naturalidade de quem acompanha as entranhas de uma separação.
O casal interracial que é a meta do filme é uma bela e infelizmente rara surpresa no cinema, principalmente em se tratando de personagens jovens. Sem levantar bandeiras, o filme propõe inclusão e aceitação sem precisar usar dos tradicionais panfletos que costumamos ver em obras cinematográficas recentes. No lugar disso, temos uma estranheza generalizada que nunca alcança a etnia dos seus atores, trazendo naturalismo ao que no mundo aqui fora é problematizado da maneira mais babaca possível. Ainda assim, outra categoria de surrealismo assola o material apresentado pela diretora.
Assim como em Ferrugem, o filme escolhe um lado onde se concentrar e tira a voz do sacrificado em questão, e aí temos o silenciamento do personagem negro, pobre e periférico, abortado da vida para se transformar em fantasma que só na última conclama sua própria vontade, que volta a encarcerá-lo num lugar de violência. Ao escolher só abordar um lado da história, Alice apaga a relevância do outro lado e o filme acaba se equilibrando em cima de uma única perna, perdendo uma reflexão que poderia ser mais ampla pra se concentrar uma abordagem burguesa sobre a perda, quando tinha em mãos um palco ainda mais promissor.
A abordagem de fantástico é uma sombra bem-vinda mas que age tímida até dar as caras de verdade; com isso, durante boa parte da produção, a esquisitice e o deslocamento narrativo é a mola mestra do filme, que caminha muito lentamente na tentativa de criar uma substância que seja maior que estética. Digão Ribeiro (de Praça Paris) é o elemento de maior conexão humana e a participação especial de Nahuel Perez Biscayart (de 120 Batimentos por Minuto) é muito bem-vinda, porém o elenco em geral parece tão deslocado quanto o balé de imagens que Alice sugere, mas que no caso do elenco não soa positivo.
O cômputo final parece ter conjugado um excesso de boas intenções, defendidas com qualidade pela direção de Alice, que não foi acompanhado pelo roteiro e pelas decisões narrativas, algumas vagas e outras equivocadas. Ainda assim, Sem Seu Sangue é um exercício de estilo e de gênero muito interessante e promissor, que derrapa muitas vezes na sua tentativa de tornar onírico uma perda adolescente, resvalando em assuntos muito sérios que aqui parecem esvaziados.
Um grande momento
Silvia surta, Artur dança
Fotos: Felipe Quintelas