Pieces of a Woman é um longa dirigido por Kornél Mundruczó, que conta a história de Martha Weiss (Vanessa Kirby), uma mulher que opta por fazer seu parto humanizado em casa, contudo passa por complicações no meio do procedimento, que parece dar certo, mas termina com o pior dos cenários para uma mãe.
Depois da perda prematura de sua filha, Martha se vê isolada de seu marido, Sean Carson (Shia LaBeouf) e em constante conflito com sua mãe, Elizabeth Weiss (Ellen Burstyn), deixando mover-se apenas pela profunda dor causada pela perda de sua filha, mas buscando não transparecer essa dor e as sequelas do parto em seu corpo e seu psicológico.
As reações dos personagens de Pieces of a Woman são variadas: enquanto Sean busca substituir sua tristeza pela lascívia e satisfação dos desejos carnais, Elizabeth claramente a transforma em ódio pela obstetriz (parteira) que atuou no nascimento da criança, e tenta responsabilizá-la civil e penalmente pelo resultado morte causado ao feto, ao passo que Martha simplesmente entra em um marasmo e uma onda de tristeza, deixando-se levar por esse sentimento, mas sem conversar sobre o mesmo com ninguém.
Enquanto o marido mostra-se incompreensível com a esposa que acabou de perder sua primeira e única filha, passando a ter comportamentos abusivos e adúlteros, a esposa não se preocupa em ser agradável com ele, nem com sua mãe, afinal, ela tem de passar pela dor do parto, da perda, e de arrumar o quarto da filha falecida.
A avó da criança, por sua vez, em sua busca incansável de substituir o sentimento da perda por qualquer outro, inicia a empreitada de encontrar um culpado para o que aconteceu: teria sido a culpada sua filha que, fraca demais, deu a luz a uma criança frágil? Ou seria a real culpada a parteira que, diante da situação de emergência, realizou o procedimento sozinha?
A busca pelo culpado, a fim de substituir a tristeza por ódio, toma conta da cabeça da avó e do pai da menina, que buscam tentar convencer Martha de, além de viver seu luto, depor no processo criminal contra a parteira, e ajuizar um processo cível, para conseguir a reparação civil pelos danos morais causados pela perda da criança.
Entra, nesse momento, o debate sobre a responsabilização criminal e cível da parteira.
Conforme explícito em Pieces of a Woman, a responsabilização criminal, pela prática de homicídio culposo, poderia ocorrer se, por imperícia, negligência ou imprudência, ela levasse à óbito a criança recém-nascida, não sendo possível, nesse caso, falar-se em “infanticídio”, porque essa figura é prevista no Código Penal somente para os crimes praticados pelas mães que, no estado puerperal, matam seus filhos durante ou após o parto.
A responsabilidade criminal, contudo, poderia conduzir à tipificação do crime de homicídio doloso se, havendo intenção, a parteira levasse à óbito a criança recém-nascida, valendo destacar que, sendo culposa ou dolosa a conduta, à luz do Código Penal brasileiro, ainda incidiria o aumento de pena do art. 121, §4º:
No homicídio culposo, a pena poderia aumentar de 1/3, se o crime resultasse de inobservância de regra técnica da profissão, ou se a parteira deixasse de prestar imediato socorro à vítima, não procurasse diminuir as conseqüências do seu ato, ou fugisse para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena poderia aumentar de ⅓, pois o crime foi praticado contra pessoa menor de 14 anos.
Na esfera cível, a responsabilidade médica de profissionais da saúde é prevista desde o Código Civil de 1916, o qual dispunha: “Art. 1.545. Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitarão de servir, ou ferimento.”
O Código Civil de 2002, atualmente em vigor, manteve redação similar ao revogado, impondo o pagamento de indenização por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
Neste contexto, analisando-se a história do longa, é imperiosa a análise da culpa da parteira, porquanto a ausência do dolo é evidente, e, para isso, questiona-se quais procedimentos deveriam ser praticados pela obstetriz.
As primeiras cenas de mostram, portanto, a jovem mãe iniciando um trabalho de parto anormal: sua dilatação e a redução do tempo de suas contrações acontecem de maneira acelerada, e há um leve sangramento quando a mãe resolve entrar na banheira, tudo acompanhado de fortes dores, e a sensação de mau odor, náuseas e um gosto ruim na boca da gestante.
Visando acalmar a mãe e conduzir o processo de parto, a obstetriz, então, anuncia ao marido que talvez seja necessária a transferência da esposa ao hospital, haja vista que não parece se tratar de um parto comum, e pede para que ele avise sua esposa da possibilidade de não fazer o parto em casa, afim de resguardar a vida da criança.
O processo de parto inicia de forma tensa, com a criança entrando em sofrimento. Nesse momento, a profissional requer que o pai acione o corpo de bombeiros com urgência, o que é feito, e o parto segue o fluxo até o efetivo nascimento da criança.
Tal enredo demonstra, portanto, que a parteira afere os batimentos da criança, procura o melhor posicionamento da gestante, para cessar o sofrimento do feto, busca acelerar a saída da criança e, no momento em que percebe a criança em sofrimento, requer ajuda do corpo de bombeiros para resguardar a vida da criança.
Vale destacar ainda que a obstetriz somente iniciou o processo de parto sozinha, porque percebeu que não daria tempo de levar a gestante ao hospital, nem tampouco de aguardar a chegada de uma médica, ou do corpo de bombeiros ao local.
Portanto, é evidente que todos os procedimentos necessários para resguardar as vidas da criança e da mãe foram devidamente tomados pela profissional, que não deixou de ter qualquer atitude esperada neste cenário, razão pela qual não haveria que se falar em culpa, porquanto inexistente negligência, imperícia ou imprudência em sua conduta.
Não havendo, portanto, dolo, nem qualquer requisito que identifique a culpa da profissional, consequentemente não se pode falar em responsabilidade criminal. Igualmente, inexistentes negligência, imperícia ou imprudência, não é possível falar em responsabilidade médica da obstetriz que, diante da situação em concreto, fez tudo o que estava a seu alcance para evitar o resultado morte da criança.
Ausente a responsabilidade médica, não há que se falar, por conseguinte, do direito à indenização da mãe, haja vista que a obrigação de indenizar, à luz do Código Civil, somente existe quando o dano causado o for por prática de ato ilícito ou culpa.
Importante salientar que a profissão de obstetriz, ao contrário da profissão de cirurgiã(o) plástica(o) estética(o), não toma para si a obrigação de alcançar o resultado pretendido pelo paciente. Isto é: ainda que a paciente busque o parto do filho vivo e saudável, em havendo circunstâncias alheias à vontade da obstetriz que podem causar um resultado diferente desse – bem como relatado em Pieces of a Woman -, não há responsabilidade da parteira pelo simples fato de ela exercer tal profissão e dela se esperar condutas que garantam tal resultado.
A obstetriz deve, sim, ter comportamentos profissionais que busquem reduzir o sofrimento da mãe e da criança e resguardar-lhes a vida e a integridade física, contudo, quando tomados adotados todos os procedimentos necessários, se o resultado atingido for diferente do esperado, ainda que todos os cuidados médicos tenham sido observados, não haverá a responsabilidade cível e o dever de indenizar da parteira.
(Pieces of a Woman, CAN/HUN/EUA, 2020, 126 min.)
Drama | Direção: Kornél Mundruczó | Roteiro: Kata Wéber | Elenco: Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Ellen Burstyn, Iliza Shlesinger, Benny Safdie, Sarah Snook, Molly Parker