- Gênero: Drama, Suspense
- Direção: Daniel Bandeira
- Roteiro: Daniel Bandeira
- Elenco: Malu Galli, Zuleika Ferreira, Tavinho Teixeira, Samuel Santos, Ane Oliva, Edilson Silva
- Duração: 100 minutos
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O cinema brasileiro tem conseguido traduzir com perfeição o estado de coisas espiritual e psicológico que está na ordem do dia da nossa sociedade. Alcançar o viés político, transformar em petardo sócio-econômico, e injetar nessa atmosfera toda a sorte do cinema de gênero, é uma característica do nosso realizador atual. Capturando o espírito do tempo, onde as revoltas não estão apenas no campo das possibilidades, mas da concretização, Propriedade é mais uma aventura a conseguir bons resultados estéticos e narrativos que percebe nosso anteparo social e constrói uma alegoria de base sólida. Com a ajuda de um certo impulso dado pelo próprio país, não é difícil identificar o calor dos acontecimentos em tela, que são transformados em potência.
Daniel Bandeira tem uma carreira interessante. Lançou seu primeiro longa, Amigos de Risco, em um Festival de Brasília de 15 anos atrás, e viu a única cópia desse filme desaparecer num voo de volta para casa. Mais de uma década depois, uma cópia do filme reaparece, enfim é lançada, e depois de montar obras do quilate de Vinil Verde e Brasil S/A, Bandeira está lançando seu segundo filme, Propriedade, no Festival do Rio desse ano. A comunicação é imediata, com o cinema brasileiro da atualidade, com a maneira com que o audiovisual versa sobre política nesse momento, e com a própria pujança representada aqui em relação ao que vem sendo feito. Mesmo tendo sido rodado há alguns anos, o filme é atual e sua observação é pertinente e incômoda.
A burguesia segue encastelada, tentando sobreviver aos seus traumas particulares e desarticular outros tantos, que fizeram sua construção. De outro lado, a verdadeira população do país, como ouvimos no final de Marte Um, segue dando um jeito. Esse jeito, no entanto, é resolvido subjetivamente de acordo com cada grupo social – sempre bom lembrar o quão o Brasil é imenso, e como cada periferia têm escalas diferentes, com códigos diferentes e relações com as esferas de poder capitalistas igualmente diferentes. O jogo jogado em Propriedade é aquele padrão, das capitanias hereditárias que encontram os indígenas, remetendo aos nossos últimos 500 anos em todos os séculos. Hoje, alguns bons anos depois, ainda estamos no lugar de oferecer espelhos em troca de escravidão.
Apesar da urgência e da ampla comunicação, falta ao roteiro de Bandeira sublinhar melhor as prévias de seus personagens antecipadamente aos eventos que acompanhamos. Não porque nos falte compreensão dos fatos, mas porque da maneira como é acessado, Propriedade coloca em cheque o nosso acesso a eles, administrando suas culpas sob outras óticas. A personagem de Malu Galli, por exemplo, que seria a madame em cena: seu sofrimento agudo da abertura a blinda (com trocadilho) para o futuro, e os personagens que incorrem sobre ela só ganham camadas vilanescas, que com certeza não era da intenção de Bandeira. Entendemos o lugar de onde todas aquelas dores partem, mas a partir do momento que só os vemos em ação para o confronto, há o questionamento sobre como eles ecoam no imaginário, ao final da sessão.
A associação com a negativização das personagens remete também ao ancestral do homem branco, que provavelmente via no indígena, no cativo, no negro, na mulher, no gay, uma forma ainda propensa ao ato de obedecer, de maneira servil. Propriedade tenta tirar da frente do oprimido a lente do opressor, no discurso sua demarcação está clara, já na criação da imagem sua mensagem corre o risco de ser entendida de maneira truncada. Ainda que não consiga encontrar o tom mais acertado em todos os momentos para definir a orientação do que é visto, o filme segue em direção muito promissora, porque enquanto peça de cinema, Bandeira sabe exatamente o que fazer com seus planos; Pedro Sotero fotografando não atrapalha em nada, pelo contrário. Juntos, ambos fazem de Propriedade uma experiência imagética de força inegável.
Que o roteiro não encontre a mesma potência que a direção, mas que ainda assim consiga comunicar suas verdades e recontar uma fatia de História ainda presente em vários rincões do país, é da configuração do jogo. Ainda assim, à Propriedade não falta personalidade e uma característica curiosa: o filme tem coragem de manter-se fiel aos seus desígnios. Ainda que seja assolado por uma moldura que tenha aparecido com frequência nos últimos anos, Bandeira não tem medo de respeitar suas decisões e expor imagens que poderiam parecer replicadas. Ao invés disso, ele provoca com seu desfecho uma supremacia da resistência, mas principalmente uma pergunta se faz relevante: em algum momento a força do oprimido se encerra? A julgar por sua última imagem, fica na cabeça a ideia de uma destruição de futuro que nunca cessará de tentar.
Um grande momento
As mulheres quase chegam a um acordo, encerrado por um tiro