Crítica | Cinema

Marte Um

O fim e o recomeço

(Marte Um, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Gabriel Martins
  • Roteiro: Gabriel Martins
  • Elenco: Cícero Lucas, Carlos Francisco, Camilla Damião, Rejane Faria, Russo Apr, Robson Vieira
  • Duração: 115 minutos

A noite mais triste da minha vida. Eu sabia o que ia acontecer, mas torcia muito para que alguma coisa mudasse no último minuto. Não mudou. Aquelas horas angustiantes depois da viagem de bate e volta para apertar os botões que tentavam evitar a tragédia, seguidas por gritos e buzinas e pelo nó na garganta que vieram com o resultado. A insegurança e o medo. A necessidade de encontrar alguém. O abraço amigo entre bandeiras que festejam a catástrofe óbvia e o grito de uma varanda qualquer “Ainda estamos aqui! Estamos juntos!”. As lágrimas.

É nessa noite que começa Marte Um, novo filme de Gabriel Martins, ficção brasileira selecionada para esta edição do Festival de Sundance. O filme não sabe o que vai aconter e nem tem a pretensão ou a possibilidade de prever o tamanho do caos que assolará o país, mas percorre com sensibilidade aquilo que já foi afetado antes mesmo da troca de faixa, porque a mudança a precede. Ali está um Brasil que tem cores diferentes e inegavelmente mudou, mas mantém a desigualdade de tempos e tem suas discrepâncias no externo e também no interno.

Leonardo Feliciano/Cortesia Sundance Institute

Ao acompanhar o cotidiano de Wellington, Tércia, Eunice e Deivid temos a chance de conhecer um pouco de um Brasil que Bolsonaro odeia. Nesta família de classe média baixa, trabalhadora, ele é zelador de um condomínio de luxo, ela diarista. A filha mais velha está na faculdade, estuda Direito, e o filho estudande do ensino fundamental sonha em ser astronauta, integrar uma missão que colonizará Marte, a tal Marte Um que dá nome ao filme. Ali está o passado recente, que permitiu que paradigmas fossem quebrados na educação formal, mas está também o reacionarismo, aquele que mantém tradições nocivas que diferenciam gêneros com funções específicas. A arte de ariar uma panela. O sonho de ser jogador de futebol.

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Há sutileza no modo como o diretor aborda a percepção do estado das coisas naquele momento político e social, como questões ainda arraigadas podem valer em tempos presentes e, por vezes serem mais relevante, levando a consequências desastrosas. Também não há julgamento, nem intenção, mas percepção. Marte Um dá tempo para que se conheça cada um dos personagens, para que se tente compreender suas relações com o mundo que os cerca e os desafia. O filme os expõe a situações de desejo, de sonho e de ansiedade crescente.

Marte Um
Leonardo Feliciano/Cortesia Sundance Institute

Martins traz o mundo em sua diferenciação classista na intangibilidade e aponta as contradições geracionais. A filha que pega a chave da cobertura e o pai que pega a chave para limpar a areia do gato, na dicotomia de enfrentamento e submissão. “Nem tudo que é combinado tem que ser aceito”. E há muito dessas quebras no filme, quebras que vêm com a não realização e com a percepção da mudança vindoura, ou com a tomada de rédeas da própria vida. A noção de que a expectativa do outro não precisa ser a sua porque as escolhas alheias não são as suas. E, mesmo que estas escolhas interfiram no seu caminho, cada um tem a sua própria estrada.

Para além das pessoas, Martins não poupa elementos externos que criam ou incentivam esses sentimentos, como quando insere a televisão e seus jogos, algo que pode ser lido como uma metáfora ao caos. Não é necessário jogo de antecipação ou adivinhação, porque o processo já estava começado, o que se tinha vai deixando de existir, seja trabalho, saúde, dinheiro, e é preciso voltar ao passado. E do dia um para frente, é fato, o discurso concretizado, a má sorte se realiza. “A gente se fudeu!”

Leonardo Feliciano/Cortesia Sundance Institute

Ali está claro todo o quadro. Nada mais está escondido ou precisa de explicação. A percepção é de que tudo está muito ruim, o pior aconteceu, mas nós ainda estamos vivos. E o sonho permanece, principalmente nas novas gerações. Elas ainda sonham em novas vidas, nos projetos do futuro, porque isso tudo vai passar, tem que passar. E volta aquele grito da varanda: “Ainda estamos aqui! Estamos juntos!”. Marte Um também é isso. Pode acontecer tudo, de qualquer maneira, há laços que são eternos. Por mais errado e torto que tenha sido, nunca podemos esquecer a força do estar junto.

Um grande momento
Câmera no chão

[Sundance Film Festival 2022]

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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