Crítica | Festival

Aurora

Colhendo memórias

(Aurora, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: João Vieira Torres
  • Roteiro: João Vieira Torres
  • Duração: 132 minutos

Tudo começa com um sonho. Um sonho de retornar. Um sonho que acorda o cineasta e o põe de novo em trânsito entre França e Bahia, entre biblioteca e sertão, entre memória contida e ferida aberta. Em Aurora, João Vieira Torres retorna até sua avó, Dona Aurora, parteira e curandeira no interior da Bahia, não para celebrá-la, mas para seguir seus rastros, para escavar o que ficou sem nome. São mulheres que cuidaram, geraram e foram esquecidas, e um lugar que o autor deixou para sobreviver. A viagem é quase obrigatória, mas a chegada jamais será plena.

As imagens do filme respiram travessia. A câmera circula casas abandonadas, árvores antigas, abrigos de solitude; os corpos das tias, da mãe retornam em arquivo, em devaneio ou em registro direto. Há uma arquitetura da ausência em cada plano: a casa em ruínas, o pônei rosa que sumiu, o rio São Francisco. O diretor escolhe a paisagem como memória e a narração como timbre de voz. A partir daí, o cinema vira gesto de reparação, de encontro e de pertencimento — mas também de não-pertencimento, da alteridade que resiste.

No centro de Aurora está a violência de gênero e racial que assinala a formação do Brasil. Torres não esconde essas feridas. Fala de tias expulsas, de assassinatos por ciúme, de mães que não disseram tudo, de famílias que não revelaram seus segredos. A câmera filma a gravação das lacunas. Ele conjuga a afetividade com os fatos mais crus, “mal-dição”, “curandeira”, “feminicídio” — e rompe com a ideia de que “voltar pra casa” é retorno puro. Casa é também campo minado. E o amor por aquela avó é denso, mas não inofensivo.

O filme faz da forma indagação. Longos quadros, pausas, o som do vento ou das moscas, tudo entra para que o espectador sinta mais do que entenda. Torres evoca os fantasmas e admite a narrativa híbrida, assumindo que Aurora é mais ensaio do que documentário. A montagem salta entre Paris e sertão, entre riso e dor, entre aquela infância rejeitada e o acolhimento feminino que o salvou. A premissa pessoal vira universal, porque todas as genealogias de abandono e silêncio se reconhecem em suas palavras.

No entanto, Aurora tem seus momentos de insegurança. Há um trecho final que estica demais, que dilui a urgência inicial. Quando o filme se perde na contemplação sem transição, a estrutura se esgarça. A conciliação quase suaviza o risco do que foi revelado. É como se, ao final, a dança da volta se acomodasse num sofá confortável e não era essa a sensação que o filme começara a induzir. A tensão ficcional, o nervo da volta, ali, deixa de doer com o mesmo incômodo.

Porém, algo permanece. O que está em cena é a restituição de vozes que foram caladas, a insistência de que nenhum gesto de cuidado doméstico ou curador escapa sem rastros, e que aqueles rastros merecem existir nas imagens. Aurora é o mapa de uma herança que carrega gênero, corpo, dor e desejo. É cinema feito de retorno, mas também de recusa à invisibilidade e ao desaparecimento.

Um grande momento
A história da tia

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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