Crítica | Cinema

A Baleia

Equívocos acumulados

(The Whale, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Darren Aronofsky
  • Roteiro: Samuel D. Hunter
  • Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Ty Simpkins, Hong Chau, Samantha Morton
  • Duração: 117 minutos

Nem todas as pessoas são tão hábeis no trato de alegorias quanto o cineasta Darren Aronofsky. Como alguém que traz a obsessão como tema principal de sua obra, ele a diferencia transcendendo o que está posto, indo além do óbvio e básico. Do mosaico criado em Requiem para um Sonho ao performático Lutador ou do irreal Cisne Negro aos cristãos Noé e mãe!, os acertos são muitos, mas quando algo não funciona, não funciona absolutamente. É o caso de A Baleia, melodrama adaptado da peça de mesmo nome de Samuel D. Hunter, que chega ao cinema sem conseguir se descolar do formato e do tom teatral; incomodando pela forte carga preconceituosa disfarçada de contestação que carrega, e por mais uma série de outras fragilidades que só se sustentam graças à potente presença de Brendan Fraser como Charlie. Ele é o professor de literatura muito obeso que entra em processo de autodestruição após perder o seu grande amor e, antes do fim, tenta resgatar alguns laços perdidos.

Para começar, há a obviedade da imagem naquela figura marcada pela impressionante maquiagem e destacada desde o título do filme, e a maneira desequilibrada e desrespeitosa em lidar com ela, em associações, palavras e até no ressaltar da doçura do personagem, como se incongruente fosse. Partir do corpo como objeto de desconforto, usando-o como elemento de manipulação de sentimentos e descarregando nele toda uma sorte de elementos negativos de uma vida beira a barbaridade. A problemática precede o longa, está na peça, que busca na literatura uma relação que pode parecer interessante, mas não é legal. Das páginas de “Moby Dick”, clássico absoluto de Herman Melville, criatura e caçador, a baleia assassina e o capitão obstinado Ahab, se fundem em uma persona que atualiza e acumula resquícios de compulsão (obviamente), vergonha, homofobia, intolerância religiosa, abandono parental, depressão profunda e outra sorte de negatividades.

Num jogo constante de identificação entre as obras, sempre evidenciado pela definição do protagonista e quase didático nas sucessivas rememorações ao texto do século 19 que surge como a única ligação entre pai e filha, os personagens se encontram confinados a um espaço restrito. Enquanto imagem de um corpo que já não tem mais como se mover, enclausurado e não funcional é o objeto em uma das relações que afasta, mas aproxima de outros signos cetáceos tão prontamente identificáveis, Charlie é também simultaneamente Ahab e Moby Dick, um homem amargurado que persegue sua vingança, mas também é a própria vingança pela vida que abandonara. Existe uma intenção de complexidade, mas ela nunca se realiza e os desdobramentos, quando não aleatórios, são sempre superficiais. Os conflitos surgem perdidos na dureza da abordagem, não há equilíbrio. Se Charlie é tão sobrecarregado, Ellis, seu principal contraponto, o passado com o qual tenta se reconciliar, é mal delimitado e tem pouca função além da de criar o confronto sentimental que levará ao clímax.

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Ainda mais superficial é a personagem Liz, enfermeira e amiga de Charlie, que, embora conte com uma atuação inspirada de Hong Chau, surge numa associação oportunista condizente com toda a carga melodramática e apelativa de A Baleia. Ou mesmo o jovem Thomas, que chega para expor mais um trauma latente e abordar um outro tema. Todos eles elementos que Aronofsky, e antes dele D. Hunter, dispõem para compor a jornada de desespero e comiseração daquele homem. E funciona como deveria se observada apenas essa camada rasa de atos e consequências com suas sucessivas tentativas de emocionar, mas não é possível ignorar sobre o que se está falando e nem o modo como se está falando.

O que está em tela é agressivo não apenas em uma direção, mais do que isso, não há uma relevância para que seu discurso se sustente. Toda a gordofobia, homofobia e intolerância se confundem em crítica e uma involuntariedade constrangedora. A superficialidade baseada nos traumas e choques com que constrói a possível redenção do protagonista ou de quem quer que esteja à sua volta é perigosa e não há habilidade alegórica que dê jeito no mau uso de uma imagem que se gostaria representativa para tanta coisa mais. Sobra a A Baleia a atuação realmente impressionante de Fraser, excessiva, mas adequada ao projeto, e todo o trabalho de maquiagem já destacado aqui.

Um grande momento
É uma grande redação

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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