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A Balsa

Se pudesse escolher entre o bem e o mal…

(Flotten, SWE, DEN, ALE, EUA, 2018)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Marcus Lindeen
  • Roteiro: Marcus Lindeen
  • Duração: 97 minutos

No início dos anos 1970, o antropólogo Santiago Genovés elaborou um estudo comportamental baseado nas inúmeras experiências de conflitos bélicos que se seguiram na humanidade, tentando avaliar se o mundo conseguiria enfim viver sem guerra, mesmo se confrontados com seus piores sentimentos. Assim sendo, criou um dispositivo de convivência “forçada” ao extremo: uma balsa atravessando o Oceano Atlântico por três meses, com um grupo de 10 pessoas escolhidas com propósitos pré-definidos. Essa experiência deu origem também ao longa A Balsa, curiosíssima estreia da plataforma Reserva Imovision.

Para aficcionados nas dinâmicas humanas que são elaboradas anualmente por um Big Brother Brasil da vida, ter acesso a seu ilustre precursor é fascinante. Tendo acesso aos diários de Genovés, que viajou com a equipe para monitorar in loco a experiência, o filme acessa a mente e os intuitos escusos de um Boninho de 50 anos atrás, e acompanha que o hábito de “dar uma espiadinha” não nasceu através da Rede Globo. O diretor Marcus Lindeen consegue reunir os tripulantes ainda vivos e repete o dispositivo que Susanna Lira usou para Torre das Donzelas, ao recriar o barco e tornar a realocá-los no mesmo espaço físico; sem o oceano, lógico.

A Balsa
Foto: Divulgação / Imovision

Genovés tinha por linha principal de pesquisa a propensão à violência dos seres vivos e pressentia que, retiradas todas as suas opções e possibilidades para escapar de conflito, só sobraria ao indivíduo o embate. O filme, com uma ótima narração do ator Daniel Giménez Cacho (de Zama), se apropria da visão pouco ética do antropólogo e verbaliza seus pensamentos, que entram em parafuso ao perceber seu projeto saindo da sua zona de interesse através do pacifismo que seus tripulantes naturalmente embarcam. Como um antepassado do filho de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o antropólogo passa então a manipular suas cobaias, incitá-los à discórdia com revelações e criar um ambiente de constante tensão em alto mar.

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A ideia de Lindeen é menos vilanesca, ao propor que seus personagens não só acessassem de novo o cenário recriado em cena, mas principalmente a relação que nasceu entre aqueles desconhecidos, revelando a união entre eles e o que os apartou, sem nunca antes ter sido revelado. A balsa original foi um projeto que, pretendendo dissecar a violência explícita dos seus seres, não se furtou em revelar muito do que há de pior do ser humano sem precisar derramar qualquer gota de sangue entre eles. Machismo, racismo, autoritarismo, tortura psicológica – Genovés não foi capaz de perceber que ele foi o mais afetado pelo próprio experimento, que fez aflorar nele tudo que ele desejava ver nos outros.

A Balsa
Foto: Divulgação / Imovision

Com alguns sinceros momentos de entrega entre seus personagens no contemporâneo, a reverberação do passado nos dias de hoje afloram discussões prementes da sociedade que foram plantadas na situação original e só hoje vêm a eclodir. O diretor sueco, recuperado das imagens gravadas na viagem original, tendo recebido os diários de Genovés e recriando o espaço físico para que seus tripulantes voltem a travar contato com o que lhes foi exposto no passado, já monta também ele o seu próprio reality show particular, e acaba por deixar claro como um documentário é tradicionalmente uma maneira delicada de invadir privacidades consentidas e manipular, em maior ou menor grau, os conceitos de concreto e ilusório.

Os limites do voyeurismo, que estão todos contemplados tanto na experiência original quanto na abordagem recriada, são igualmente expostos, e tendo acesso a manipulação proposta por Genovés, nos deixa suscetíveis a questionar todas as prováveis outras que foram perpetradas desde então, dos próprios tripulantes entre si, chegando até Lindeen e posteriormente ao espectador, quando reorganiza cada atitude de seus “atores” em cena, abrindo mais uma fatia da discussão, essa a nível ainda mais psicológico. A Balsa, em muitos sentidos, também fala da hipocrisia atual de só percebermos o mal quando é alheio, e não o nosso próprio, relativizado.

Um grande momento
Ouvindo os navios negreiros

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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