- Gênero: Drama
- Direção: George C. Wolfe
- Roteiro: Ruben Santiago-Hudson
- Elenco: Viola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo, Glynn Turman, Michael Potts, Jeremy Shamos, Jonny Coyne, Taylour Paige, Dusan Brown
- Duração: 94 minutos
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A adaptação da peça homônima de August Wilson que acaba de estrear na Netflix, A Voz Suprema do Blues, constrói uma abertura plasticamente exuberante que tenta fugir das origens de sua matriz, além de já apontar ali que o racismo é um tema pertinente em sua carpintaria, porém que suas entranhas não serão explicitadas ou devassadas; é o fim dos anos 1920 nos EUA, não precisa de cartela pra entendermos que mesmo sendo artistas, empregados e bem remunerados, aquelas pessoas ainda são pretas, e por isso serão exploradas, serão diminuídas, serão injustiçadas – é a entrelinha padrão até hoje, imagina no período. Portanto, abrir o filme com duas crianças negras correndo por um pântano à noite já entrega sua função, e a quebra da expectativa só reforça o medo do desconhecido.
George C. Wolfe é um dramaturgo e diretor teatral, com alguns punhados de indicações e vitórias no Tony (o Oscar do teatro), mas que até aqui só tinha brilhado em produções no audiovisual para a TV, como Lackawanna Blues e A Vida Imortal de Henrietta Lacks. Aqui, seu potencial expande, ainda que ele precise se desvencilhar durante toda a curta duração do filme (uma hora e meia) das marcações teatrais, que ora funciona ora não; dividir a narrativa em tomos separados que acontecem em paralelo e dividir suas cenas intercalando blocos é o exemplo positivo, e o negativo são os grandes monólogos que beneficiam os atores mas não ao filme e que aqui são parte vital.
Como se trata de um filme majoritariamente negro (apenas dois dos nove personagens em cena são brancos), o já descrito racismo não é o tema predominante, mas se o filme é tão pontual para empregar suas falas, isso não significa que ele seja menos incisivo nas mesmas questões, a produção apenas se vale de uma discussão a respeito de ascensão social e empoderamento de periféricos com o máximo de requinte possível, sem projetar denúncia rasgada na tela; ela existe e é pronunciada, ela é violenta e deixa marcas profundas, no pré e no pós-filme, mas dessa forma seu alvo é atingido com mais impacto, porque sua fúria passa a não ser mais esperada, a partir de determinado momento.
As relações pessoais e profissionais de A Voz Suprema do Blues, no entanto, são absolutamente definidas por esse pêndulo invisível que paira sobre os personagens. É a exigência de um tratamento reverente como provavelmente é destacado a qualquer branco (cuja cena final prova e entristece), é o sonho de escalar degraus sociais mesmo diminutos, é a eterna desconfiança de agentes responsáveis pela justiça, é o simples ato de estar no mundo constantemente negado e questionado a pessoas pretas. Há uma hierarquia de (pequeno) poder no filme que reflete essas relações e posiciona no mundo camadas e mais camadas de reinterpretação de dogmas, que são escritos, mantidos e, quando bem entender a quem deter o poder, deixa de valer.
Em algumas passagens, a sutileza narrativa acaba denotando um problema, já que seus personagens são pessoas acostumadas a ter o que querem, lutar por isso e não estarem dispostas a perder. Por isso, que algumas não gerem conflito condizente com a natureza daquelas pessoas, acaba soando incoerente, ainda que tire o filme do tom agudo que ele se acostuma em estar. Essa supressão de clima causa estranhamento justamente por Ma Rainey e Levee serem adeptos do embate, o que proporciona a todo seu elenco uma experiência coletiva impressionante de imersão e união, em prol do bem maior, que é transpor a integridade dessas relações e seus desenhos.
Capitães do navio, Viola Davis e Chadwick Boseman estão de fato em grandes momentos de suas carreiras, ele infelizmente o último. Nunca tendo sequer arranhado a intensidade vista aqui, o eterno Pantera Negra vulcaniza suas cenas em uma composição que balança entre a malandragem e a dor recôndita que terá vez em cena, porém ele tem um limite de capacidades. Já Viola, mais uma vez prova que não há limites para a sua entrega e seu talento, aqui em composição completamente distinta de tudo que já fez, feroz e amarga. Apesar de terem poucos embates (porque suas vibraçẽs em cena são descomunais), eles comandam um grupo de alto nível para emoldurar uma história que infelizmente ainda reverbera – não preciso citar como artistas negros ainda não tem o mesmo espaço na indústria né?
Dois dínamos prestes a explodir, Viola e Chadwick reforçam em seus dois lados muito espaçados do sistema como todos são afetados pelo preconceito, tendo ou não star power. Do alto do seu carro de luxo ou preso em uma masmorra metafórica, um negro ainda não é livre para ir e vir, fazer escolhas ou ser tratado com dignidade. A busca norteia quem tem algum poder e quem não tem nenhum, embora a solidão seja comum a todos. Sempre haverão brancos para substituí-los, a qualquer momento.
Um grande momento de Viola
“Eu quero três Coca-Colas”
Um grande momento de Chadwick
“onde está o seu Deus?”