(Açucena, BRA, 2021)
A Aurora, mostra competitiva de longas metragens e principal vitrine de Tiradentes, abre sua edição 2021 já com uma pedrada: como elaborar pensamento crítico sobre Açucena, mantendo a integridade de seus plots e respeitando os claros desejos de Isaac Donato, seu diretor, em manter uma aura de proteção aos códigos que são desvendados aos poucos em seu filme? Como se debruçar sobre um filme tão delicado no trato ao seu tema que o manuseia de maneira a cuidar de seus signos e manter o espectador refém de um certo mistério naturalista que se desvenda (ou não) de formas ao mesmo tempo sinuosas e prosaicas?
Sabe-se que Donato é tão cuidadoso com seu longa pela esfinge ínfima de sinopse que ele disponibilizou para Tiradentes, a respeito de uma jovem senhora que insiste em aniversariar sempre seis décadas atrás de sua real idade (real-idade?). Ainda que, para uma pessoa minimamente versada sobre onde o filme quer chegar, essa “charada” seja desvendada antes da metade da produção, não serei eu a traduzir o que seu diretor tão habilmente compôs para a experiência coletiva. Então talvez seja o caso de mais uma vez reencontrar com esse arqui-inimigo que insiste em querer minha parceria, o tempo.
Porque é bem lógico, pelo tratamento das cenas, pelo ritmo que sugere aos diálogos, ao desenrolar de dois dias quase em close temporal, pelas ações que são exercidas em caráter contemplativo, trata-se do tempo um alicerce necessário para a compreensão do modus operandi no qual versa não apenas Açucena, o filme, mas principalmente a colcha de retalhos humanos que é tecida a nossa frente por seus personagens, que ao dedicar-se tão vagarosamente aos seus afazeres cotidianos (e espetaculares também, afinal, uma festa é preparada enquanto corre a narrativa), denotamos àquela comunidade códigos de afeto profundos, uns aos outros e a suas próprias atividades.
O tempo, enquanto senhor sábio que governa aqueles preparativos como um ourives, é também o aliado de nossa protagonista, que se recusa a… envelhecer. Mas será que é essa a real chave de entendimento a essa mulher, ou estaria ela mandando um real recado à pureza perdida por todos nós e que fez tanta falta em 2020? Em determinada cena, talvez a Cena Capital do filme, nossa protagonista enfim se encontra com quem o espectador segue buscando por todo o filme, sem saber que ela sempre esteve ali. Nessa cena, somos invadidos por um emaranhado de sensações, mas o que prevalece ao final da projeção é a aceitação de uma camada que não precisa ir embora de nossas vidas, e que ali naquele momento, atravessa a personagem e o filme.
Com o tempo como matéria prima, e com a expectativa por um evento futuro, óbvio que Açucena também acaba sendo um filme sobre o compasso de espera na sociedade de hoje, que inexiste. Observar as nuances de cada atividade exercida no filme, da feitura de um vestido ao posterior ato de produzir bonecas, do planejamento em relação a feitura de um bolo, do empenho ao fazer um convite que pode ou não ser aceito, o filme situa o espectador em um lastro de contemplação progressiva, ao mesmo tempo em que posiciona as pessoas filmadas em processos diferenciados de espera contemporânea, unindo os dois lados da tela em uma posição não aceita hoje em dia – esperar é um ato de produzir paciência.
Dedicando acordes ligeiramente sombrios de sua trilha sonora composta por O Grivo (de Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar) a criar um contexto de fábula ora enigmática ora atmosférica quando não propositalmente bizarra, Açucena ainda se dedica a olhar todos esses processos com uma devida estranheza, como se tivesse a consciência do estranhamento por trás de todas as suas minúcias, mas Donato é tão cuidadoso que nunca deixa inundar seu filme em desrespeito por todas as camadas que se sobrepõem e que criam um painel que pode ser conjugado sob diversos prismas distintos, incluindo conjugações cinematográficas díspares, que a princípio poderiam se anular, mas que só engrandecem a beleza do todo.
Como na fantástica fotografia de Flávio Rebouças (de Pattaki) que descentraliza seus elementos para materializar a ausência de uma presença constante, que não necessariamente está em cena sem nunca sair dela, e também busca refúgio no fantasmagórico de suas luzes, Açucena, através da sofisticação das imagens construídas por Rebouças e Donato, demonstra carinho e respeito não apenas aos seus personagens, à sua atividade, ao espaço cênico que habitam e ao contracampo que tanto enriquece também a narrativa (a ausência, mais uma vez ela – incluindo no que o filme respeitosamente escolhe não avançar), mas que abre um mosaico necessário para tratar com profundidade e autoridade um tema ainda marginalizado na sociedade, o respeito por todas as categorizações de fé presentes.
Um grande momento
“Mamãe… um beijo…”
Fotos: Diego RB