(Atravessa a Vida, BRA, 2020)
Há 15 anos atrás, João Jardim escreveu o que seria um prólogo desse novo filme, que estreia agora no Festival É Tudo Verdade. Pro Dia Nascer Feliz foi muito bem recebido e viajava Rio de Janeiro/São Paulo/ Pernambuco para investigar questões sociais, emocionais e psicológicas de estudantes de escolas diferentes com realidades e desenvolvimentos diferentes, mas todos com a busca pelo futuro impregnada no DNA; Atravessa a Vida corre pro interior do Sergipe, a uma única escola no último ano do ensino médio, especificamente, para encontrar jovens que estão em uma seara diversa daqueles do longa anterior, em um Brasil completamente modificado.
O Brasil em plena ascensão de 2005 já não tem mais eco em 2020, e a juventude obviamente não tem mais as mesmas esperanças, destroçadas juntas com a nação. João filma um país pós-golpe, e essa ressaca moral de alguma forma está impressa nas suas imagens e nas falas de seus personagens, nos temas que eles debatem, na reação muitas vezes emocionada de pessoas ainda no início da vida e já tão encharcadas de desilusões em um momento-chave, onde eles deveriam estar fazendo uma escolha injusta; quem disse que é fácil essa pressão de escolher todo seu futuro 17 anos depois de nascer?
A maior parte dos debates não são causados pelo diretor, mas motivados pelas próprias aulas, como a escolha do curso que irão prestar, e o que eles esperam pro próximo ano; a pena de morte, e suas falas tão polêmicas quanto ingênuas e pouco refletidas; as liberdades individuais conseguidas pela democracia; até as teorias de Marx são discutidas em sala pelos professores, e desenvolvidas pelos alunos. Ainda que o foco principal num ambiente escolar no 3o. ano do ensino médio seja o ENEM, suas preocupações e resultados, o filme não deixa de procurar seus personagens para ouvir deles a respeito das suas inquietações particulares da idade, que acabam desembocando em desabafos eventualmente tocantes.
Ao menos duas cenas são expressões de uma fragilidade coletiva: a primeira acontece quando a diretora do colégio consola uma aluna após a mesma ter discutido com os pais, e esse consolo sincero acaba fazendo a curva e a aluna se vê em lugar oposto, enxugando as lágrimas da diretora, que se fragiliza com o relato da jovem, num flagrante de empatia entre ambas; a segunda é o depoimento de um aluno filho de pais separados, que lamenta a ausência do pai ao mesmo tempo em que se preocupa com o futuro da mãe, hoje dependente de uma pensão insuficiente. Em ambos os momentos, a emoção deflagrada demonstra o estado emocional de seres humanos em vias de uma decisão impossível de ser tomada, embora obrigatória.
Aos poucos a diferença entre os dois longas começam a ficar mais evidentes. Embora o desfecho de Atravessa a Vida seja feliz de todas as formas, até porque os adolescentes estão se formando, com perspectivas de mudanças enfim, cabeças cheias de sonhos renovados e sorrisos à postos, a verdade é que o clima do filme é irremediavelmente melancólico, fruto das mudanças desastrosas que o país passou nos últimos anos; estampados nos rostos de cada aluno, o semblante distante e desolador enfrenta os sorrisos típicos da juventude para imprimir um retrato do nosso tempo sem uma mínima menção que seja aos vilões atuais do nosso país; não era necessário, as assombrações são maiores que seus nomes.
O tom das entrevistas no entanto não diferem nem se sobressaem umas as outras, e as aulas em si também não se transformam, mesmo que mudem os diretores. Falta também ao filme uma intimidade um pouco mais fina com seus personagens, deixando o filme transparecer muito mais como bloco conjunto do que em suas vozes particulares. Por fim, Atravessa a Vida vaza muito mais efetivamente como comentário político-social geral do que como um retrato detalhado de seus componentes.
Um grande momento
“a mim ninguém me abraça”