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A Inspeção

(The Inspection, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Elegance Bratton
  • Roteiro: Elegance Bratton
  • Elenco: Jeremy Pope, Gabrielle Union, Bokeem Woodbine, Raúl Castillo, McCaul Lombardi, Nicholas Logan, Eman Esfandi, Aaron Dominguez
  • Duração: 90 minutos

No mês do Orgulho LGBTQIAP+, a Paramount+ lançar um filme como A Inspeção é um daqueles casos de oportunismo bem-vindo e necessário às discussões, e ao mercado como um todo. Além disso, é uma produção que faltou nos nossos cinemas, tendo em vista seu sucesso em listas de melhores do ano estadunidenses, e suas lembranças em outras listas, de indicados a prêmios, tais como Globo de Ouro e Independent Spirit Awards. Isso tudo somado às suas reais qualidades, às referências que o filme carrega de outras obras que tenta ressignificar, e ao tratamento dado às memórias de seu próprio autor, temos um título que sai da zona que poderia ser nichada para atender ao público geral. E porque não um filme de temática gay não poderia interessar a qualquer público também, não é mesmo?

Elegance Bratton não tem aqui apenas seu primeiro longa de ficção, mas essa não é uma ficção qualquer, mas uma espécie de auto-ficção. Explica-se: a história de Ellis French, na verdade, assim como os letreiros finais mostram, é a história de Bratton, ou seja, ninguém melhor que o mesmo para contar sua história. Tendo também talento para tal, ainda melhor; se essa ideia é minimamente arrogante de ser analisada, ao mesmo tempo nenhum outro cineasta teria capacidade de envolver o espectador mais que seu principal personagem. E também esses créditos finais abrigam uma contradição que só mesmo um filho poderia abrigar, que é a de amar e temer a mesma pessoa em igual proporção – sua mãe. 

É um projeto que guarda algum eco com o clássico A Força do Destino, mas que joga luz sobre um ambiente e práticas de tortura psicológica tendo o corpo homossexual no centro da questão. Se em 1983 era um macho cis branco na figura de Richard Gere que tinha seu lugar diminuído e continuamente humilhado, são outros os motivos que levam a esse corpo marginal buscar refúgio em uma instituição tão repressora quanto as Forças Armadas americanas. Preto e queer, Ellis French está tentando uma vaga na Marinha americana por motivos que são suprimidos de exposição: ele vive literalmente à margem da sociedade, desprezado por quem deveria amá-lo incondicionalmente, às voltas com a subsistência nas ruas, ser aceito em ambiente militar é uma chance de aprovação coletiva.

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A Inspeção
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E quantos de nós não estamos diariamente buscando essa aceitação, do outro e de nós mesmos, encontrando uma paz que nunca veio? As escolhas de foco de Bratton em relação que precisa abrigar em seu roteiro nem sempre são as mais efetivas para a evolução de seus personagens na narrativa, mas o sentimento é claro. French está em busca de um grau de salvação que não tem a ver com a lógica cristã, ou que os campos de conversão apregoam, como o personagem vaticina ao final. É uma libertação da dor que tudo que o rodeia lhe impôs, seja particularmente ou socialmente, uma ideia de encontrar uma tábua de salvação que lhe provenha menor dor física, já que a emocional é inerente. 

A Inspeção poderia assim ser mais abrangente de uma certa porção melodramática, que ao ser bem utilizada não é maléfica. A sensibilidade do diretor com seu caminho real mostra que ele não exageraria nos tons e na forma escolhida para retratar tais curvas de seu lugar de origem. Ao suprimir a dor prévia e deixá-la no campo da sugestão do que o plano mostra (um homem desprovido do próprio conceito de imagem social), o filme respeita a inteligência do espectador, mas coloca excesso de expectativa no que está por vir, em matéria de narrativa. E o que acaba vindo é uma espécie de arranjo esperado também dentro do escopo do filme, ainda que amansado de seus pontos mais agudos, ressoando mais o estado melancólico que se encontra o personagem, e suas ações práticas dentro daquele período. 

No lugar mais expositivo da análise, temos o trabalho tocante de Jeremy Pope. O ator foi celebrado pela participação na problemática minissérie Hollywood, onde Ryan Murphy tentava combater clichês com clichês, e ficou óbvio que um magnetismo tinha se estabelecido ali entre artista e câmera. Agora sim ele prova seu potencial com uma entrega tão pungente quanto sutil, deixando as entrelinhas falarem a cada olhar de French, em cada movimentação corporal de um homem que, imbuído de muitas dores, deixa seu sofrimento esvair na direção da câmera através de cada membro seu. Está nos olhos, na voz, mas está muito na compleição física que ele empresta a esse homem com necessidade de amor e aceitação, ampla e irrestrita. O pacote é completo com uma versão muito mais econômica do que Mo’Nique em Preciosa, aqui a cargo de Gabrielle Union, pontual na apresentação de uma mulher ambígua com seus sentimentos.

Bratton empilha seus fantasmas e só abre poucas frestas dentro do que foi sua construção pessoal, mas o pouco que vemos já transforma A Inspeção em uma experiência de transmutação da dor. O que nos formou pode também ser a porta para a renovação, e uma consciência do que enfim possamos alcançar após a mais cruel das relações maternas. 

Um grande momento

A frase final de Inez

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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