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Ponto de Inflexão

Sinfonia afinada

(La svolta, ITA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Riccardo Antonaroli
  • Roteiro: Roberto Cimpanelli, Gabriele Scarfone
  • Elenco: Andrea Lattanzi, Brando Pacitto, Tullio Sorrentino, Marcello Fonte, Max Malatesta, Cristian di Sante, Claudio Bigagli, Ludovica Martino, Chabelli Sastre
  • Duração: 90 minutos

Diz-se que o maior elogio que um curtametragista poderia receber seria o de que seu trabalho deveria ser ‘esticado’, e transformado em longa. Discordo. Um excelente curta metragem cabe em si, é o melhor que poderia ser dito a uma obra. Já os longas… bem, é difícil se desapegar de certos trabalhos, da construção que é elaborada em torno de seus personagens e suas rotinas, seus relacionamentos, o universo que os encerra. Ou não encerra. Ponto de Inflexão estreia hoje na Netflix, e está no campo da surpresa – quantas vezes estamos diante da morte, e o que devemos fazer com a vida que a cerca? Não se despedindo, sendo eternos, o que é perene, é infinito.

De uma energia contagiante, a estreia de Riccardo Antonaroli em direção de longas é dos mais prazerosos filmes a estrear esse ano, daquelas experiências que exercem uma completude difícil de comparar, porque amalgama inúmeros elementos e alguns nem deveriam conversar muito entre si, mas conversam. É um filme de máfia tenso e impenetrável, com um senso de urgência e perigo que não é conseguido com facilidade. É um “bromance” como o nem o cinema indie americano (que cunhou a expressão) tem feito com essa química. É um drama familiar que nos comove sem jamais apresentar algo além de dois únicos elementos de duas famílias. E muito mais.

Isso é responsabilidade de Antonaroli, que destrincha o roteiro delicioso de Gabriele Scarfone e Roberto Cimpanelli com muita destreza, elevando os elementos que o conjuram. São camadas de possibilidades distintas apresentadas em um jogo que nunca deixa de surpreender, e não por uma pretensa originalidade – objeto superestimado, essa tal. Não é o grau de inovação que define qualidade a um produto, mas a desenvoltura com que rompe pretensas amarras estruturais para dispor de algo (aí sim) refrescante. Sua direção imprime envergadura estética a um projeto que poderia ser tratado com displicência, e aqui adquire ares complexos graças a uma mistura improvável que nunca deixa de dar certo.

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Como dito anteriormente, é um filme que parece muito fácil de descrever por se tratar de dar conta de universos plenamente reconhecíveis da dramaturgia, que já se esgarçaram pela frequência da utilização de seus signos e molduras. Mas o roteiro nos prega peças, ao conferir mais do que o imaginado para seus tipos e as situações onde os envolve. São diálogos absolutamente inusitados, que transformam perigosos assassinos em figuras de honra, ladrões pés de chinelo em criaturas absolutamente apaixonantes e desconstrói o que a imagem inicialmente nos fornece. Como a melhor das obras de arte, nada está na superfície; há uma centelha que vibra por trás de cada acontecimento, e verdadeiramente incide a tela com calor humano.

Não se trata de algo inatingível, e é exatamente nesse lugar que Ponto de Inflexão se eleva. Porque dentro do campo de simplicidade que ele tenta aparentar, suas questões emocionais se adensam e reaquecem gêneros cansados de estirpes parecidas. Há um carinho muito genuíno por cada um de seus fotogramas e desenvolvimento de personagens, mesmo os mais corriqueiros não se vendem como planos. Tanto a luz é valorizada pela imagem, quanto o pensamento do quadro está em adequação ao que essa mesma luz pede, uma ideia muito clara de como empregar suas qualidades e elevar o material. É como se uma espécie de neo-noir fosse contrastado com a presença de um Seth Rogen em cena – é a força desse encontro que garante uma das peculiaridades deliciosas do filme.

Tudo isso só é possível porque nos importamos com cada coisa que acontece em cena, e isso só acontece pela forma dedicada com que roteiro e direção se dedicam a criar os contextos que convergem esses tipos. Não são apenas em texto e descrição que Ludovico e Jack são contados, mas também em leituras externas como seus figurinos, o espaço físico que ocupam, seus corpos, a manufatura de seus movimentos em cena – e não apenas os protagonistas têm essa curvatura, mas praticamente todos os que importam e se flexionam em cena.

Por isso, cada despedida é lamentada, e não apenas no fim, porque sabemos a qualidade do que foi criado até ali, da verdadeira mágica que acontece em torno de todos os pontos pretendidos. Sim, Ponto de Inflexão tem um clímax que já foi encenado tantas vezes que incomoda, mas é nesse mesmo momento que o filme arremata sua história como a todas as outras até ali: quando achamos que já estávamos a par de seu quadro geral, é o detalhe que reconfigura todo o jogo. São as relações humanas, quase sempre, que definirão um papel definitivo a respeito da dramaturgia apresentada. Se preparem então para não estar preparados para a despedida em questão, a interrupção aqui tem caráter tão definitivo quanto inesquecível; culpem os laços.

Um grande momento
Enterrando o morto

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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Alexandre Marcello de Figueire
Alexandre Marcello de Figueire
05/06/2022 22:09

A relação da vítima com o ladrão é o grande diferencial do filme.

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