Crítica | Streaming e VoD

Cinderela

A história agora é outra

(Cinderella-, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Musical
  • Direção: Kay Cannon
  • Roteiro: Kay Cannon
  • Elenco: Camila Cabello, Nicholas Galitzine, Idina Menzel, Pierce Brosnan, Minnie Driver, Tallulah Greive, Billy Porter, Maddie Baillio, Charlotte Spencer, James Corden, James Acaster, Romesh Ranganathan, Rob Beckett
  • Duração: 113 minutos

Era uma vez, num reino distante…

Séculos depois e ainda não conseguimos resistir a esse começo. Estamos de volta ao mundo dos contos de fadas, mas o narrador do novo Cinderela da Sony não demora a avisar que estamos em um lugar que não está interessado em mostrar nada daquilo que conhecíamos antes. Bom, não é bem assim. Ainda vamos encontrar as mesmas figuras, algumas mesmas passagens, mas uma reconfiguração realmente — e finalmente — acontece, e sem as cautelas e manipulações da Disney. Ella ainda mora no porão da casa da madrasta e de suas duas filhas, ainda tem ratinhos como únicos amigos e gosta de costurar, mas aquele espaço deixa de ser um dos pontos principais da história, dando espaço à vila. E se descobre que a Nação do Ritmo é um reino diverso que, em suas muitas cores e etnias, conta a sua história através da música.

Camila Cabello encarna bem a nova versão dessa que foi a mais sonhadora dentre as maltratadas mocinhas dos contos, aquela que tradicionalmente se submeteu às regras da madrasta, lavou, passou, ariou, espanou, se vestiu perfeitamente, conquistou um homem por sua aparência, se submeteu às regras do reino e “viveu feliz para sempre” — isso sem falar no resto do conto tradicional e de suas adaptações, inclusive com a deturpação disneyana que fazem de Cinderela a mais misógina de  todas as histórias. Como mudar isso numa realidade onde as mulheres não podem mais aceitar serem subjugadas? E como fazer isso em um mundo que continua insistindo em ensinar a todas as meninas que é o amor romântico, símbolo de salvação da “gata borralheira”, que é a solução para a vida.

Cinderela
Foto: Divulgação

O primeiro passo é transformar o musical em um filme de mulheres, e isso é feito. Dirigido e roteirizado por Kay Cannon, Cinderela se preocupa em desconstruir o clássico levando em consideração aquilo que não está de acordo com o que elas pensam ou sentem. Algumas diferenças são sutis, como a relação com as filhas da madrasta, ou mesmo com esta; e outras são radicais, como o fato de dar uma irmã ao príncipe que não só está muito mais preparada do que ele ao trono como tem vários projetos de governo para melhorar a situação do reino, além de ser afirmativa e estar sempre, do seu jeito, questionando a misoginia real.

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Por estar lidando com algo tão antigo e de teor machista tão arraigado — é uma transformação difícil dentro de todos que acontece aqui –, o filme não pode se deixar levar pelo peso das questões tratadas e para isso se aproveita de duas armas valiosas: a música e o humor. Embora muitos torçam o nariz para musicais, quando um filme incorpora canções populares à sua trama, isso ganha uma outra conotação e Cinderela faz isso muito bem. São tantas músicas que marcaram nossas vidas, como “Somebody To Love”, “Material Girl”, “You Gotta Be”, “Seven Nation Army”, e algumas tão bem coreografadas que é difícil não se deixar levar.

O humor vem muito associado à música — que delícia o coro do palácio — e aos números musicais, mesmo que alguns deles não sejam exatamente tão elaborados como a maioria, que o diga Pierce Brosnan. Mas não deixa de estar presente por todo o filme, como se fosse Gwen sempre observando tudo o que acontece por detrás dos quadros. Cinderela é leve na abordagem e no seu caminhar, mesmo falando tudo o que tem que falar e derrubando mitos levantados a tanto tempo.

Cinderela
Foto: Divulgação

A produção é muito cuidadosa, na criação da vila, do castelo e da casa de Ella, que se distingue de todos por suas cores pastéis, principalmente da madrasta e das filhas dela, que estão sempre vestidas com tons fortes. As decorações da casa e do porão também são contrastantes. O desejo de ser diferente de Cinderela está nas palhetas, não só no seu cantinho, mas em toda a cidade. Curioso que seja quando estamos percebendo essa distinção que o filme nos jogue na primeira grande transformação do conto: não tem sonho com príncipe encantado ou nada parecido, não. A mocinha aqui quer outra coisa, num lugar onde as mulheres ainda são proibidas de fazê-lo. 

Já o retrato do homem não é muito diferente de outros que a Disney já tinha conseguido alcançar em filmes como Caminhos da Floresta e afins. Charming ou Encantado, aqui nomeado de Robert, é o menino mimado da corte que por acaso é muito menos interessante do que a  primeira pretendente que conhecemos. De certo modo, Cinderela ri do poder, e dessa estrutura que leva os homens a lugares que não podem ser desafiados, onde se sentem maiores e melhores. Detalhes como o trono mais alto, a voz de rei, o sentar-se na mesa, o não dançar e até toda essa conversa com a pretendente são muito interessantes para desvendar esse lado da postura como uma espécie de determinante de grau de macheza ou potência.

O filme também questiona elementos básicos dos contos de fadas, que transcendem este específico, e passeiam por outros reinos. Há muitas coisas absurdas nessas histórias, como sabemos, e o amor ensandecido à primeira vista talvez seja o mais recorrente. Isso até a Disney já estava questionando lá atrás em Frozen e não deixa de estar aqui na conversa dos amigos fiéis de Ella. Mas nenhuma discussão vai ser mais divertida do que a do príncipe Robert com seu pai sobre a ideia do baile para encontrar uma pretendente, como se isso fizesse sentido em algum lugar.

Cinderela
Foto: Divulgação

Ella e Robert são dois personagens que pensam completamente diferente daqueles dois ultrapassados do conto tradicional, com ela inclusive desprezando a ideia da festa. Assim, o roteiro precisa dar um outro jeito para que os próximos eventos aconteçam e uma forçadinha aqui e outra ali pesam no caminhar da trama, mas, pelo modo como consegue desfazer e refazer a história, dá para relevar. Ainda mais porque leva até a borboleta fada madrinha queer mais incrível do cinema.

Os contos de fadas não surgiram para encantar ou distrair as crianças, eram usados para educá-las, amedrontando-as. Na história original da gata borralheira, as filhas da madrasta cortavam os próprios pés para que eles coubessem no sapato de cristal, algo que foi sendo amenizado com o tempo, até chegar ao que conhecemos hoje. Quando a Disney tomou conta dos contos e os pasteurizou, eles estagnaram numa visão feminina dos anos 1950, mesmo em sua tentativa de atualização, mantendo assim, a mesma condição de doutrinação velada pelo servir e em busca do amor romântico.

Ainda tem um bocado de coisa para ajeitar, mas recontar uma história como Cinderela, dando a ela outra conotação é muito importante. Ver que embora um homem esteja no poder, são as mulheres que estão conduzindo toda a trama; ver que na hora do encontro, o networking é muito mais importante e o cara vai ter que esperar, sim; ver que você vem sempre em primeiro lugar, não importa o quê. E isso tudo com magia, com baile, com dança apaixonada e com o primeiro beijo.

Um grande momento
“Até a mágica tem limites”

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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