Crítica | Outras metragens

Dois Nilos

Gigante gentil

(Dois Nilos , BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Samuel Lobo, Rodrigo de Janeiro
  • Roteiro: Samuel Lobo, Rodrigo de Janeiro
  • Elenco: Afrânio Vital, Wilson Rabelo
  • Duração: 18 minutos

Em muitos casos, a simplicidade estrutural de uma produção é ultrapassada pela força descomunal do que está sendo dito. Nesses casos, o campo de discurso não raro consegue mentir a respeito dessa mesma estrutura, escondendo a sofisticação que poderia ser vislumbrada ali. São ambíguas essas colocações, e com algum grau de contraste, mas Dois Nilos deixa o espectador desconcertado exatamente assim. Um documentário biográfico que resgata um personagem importante da História do nosso Cinema e se posiciona a favor de um movimento anti-racista que precisa ganhar corpo hoje, para que não exista um novo Afrânio Vital no futuro. 

Afrânio Vital é um diretor de cinema, que foi assistente de direção de nomes como Carlos Hugo Christensen (Anjos e Demônios). Ele assinou três longas de sucesso, comercial e de crítica – Os NoivosA Longa Noite do Prazer Estranho Jogo do Sexo. Quando ia dirigir seu quarto filme, uma adaptação que ele mesmo fez para A Mulher sem Pecado de Nelson Rodrigues, uma série de empecilhos lhe tirou do projeto. A frustração foi tamanha que Vital decidiu abandonar o cinema, e aos poucos, seu nome foi apagado da lembrança e dos registros históricos. Isso começa a ser desfeito agora graças a Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro (esse segundo, demonstrando apreço pelo resgate ao passado para eternizar ídolos que não podemos ter, como o lendário sambista Assis Valente), que mostram em Dois Nilos uma história das mais tristes da filmografia nacional. 

Isso tudo aconteceu porque Afrânio Vital é um homem negro. Com o nome em ascensão, o que poderia ser feito para descredibilizar o realizador e apagá-lo? Esse é um daqueles assombrosos contos da nossa história recente, que parecem existir apenas para provocar vergonha. Mas tudo ainda poderia ficar pior, e fica: os filmes de Vital foram dados como perdidos pela Cinemateca Brasileira. Acompanhar a presença do diretor em cena causa desconforto e constrangimento, por tudo que foi feito ao que ele poderia ter representado de exemplo para nossa cultura, e que precisa ser restaurado através de um filme que nos esfrega na cara que o racismo é ainda uma realidade que nos mostra, a cada nova escavação, uma capacidade infindável de surpreender pelo horror. 

Lobo e Janeiro, que não precisavam ir muito além de nos apresentar Vital, fazem bem mais. Dão voz a um artista como eles, que teve sua trajetória interrompida pela violência sistemática que machuca tanto quanto marca, ainda que invisível. Ao seguir seu colega pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, e nos promover a honra de ouvi-lo rememorar os lançamentos de seus filmes, os cineastas constroem uma parábola dura de aceitar, retirando do anonimato um diretor para colocá-lo nas páginas devidas da biografia do nosso cinema. Wilson Rabelo, outro gigante, está em cena como uma imagem de Vital, transformando o personagem da vida real em uma figura mítica que ele mesmo poderia ter sido, caso não tivesse sido tão facilmente violentado. 

Dois Nilos é um projeto que nunca deixa de mostrar empatia por eventos que não é necessariamente nossa culpa, mas também o é. A valorização da História é uma cobrança que pode e deve ser feita todos os dias, sem que precisemos retirar de um injusto esquecimento alguém que nunca deveria ter estado nesse lugar. Vital, vejam só, não é uma pessoa amarga, ou cabisbaixa; o filme encontra seus olhos sempre acima da margem do plano, engrandecendo uma figura que é naturalmente altiva. Com uma fotografia que valoriza a encenação e o naturalismo que cabe a um documentário, a saída catártica da sessão em Tiradentes mostra que o intuito foi alcançado – Afrânio Vital está entre nós. 

Um grande momento

De frente pro cinema 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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