- Gênero: Ficção
- Direção: Gustavo Rosa de Moura
- Roteiro: Gustavo Rosa de Moura, Leonardo Levis, Andrea Beltrão
- Elenco: Andrea Beltrão, Eduardo Moscovis, Jessica Ellen, Lara Tremouroux, Mariana Lima, Karine Teles
- Duração: 82 minutos
-
Veja online:
De toda a imensa lista de gêneros possíveis de realização, não sei se a mais difícil de realizar, mas provavelmente a mais complexa de alcançar resultados bem sucedidos é o drama familiar naturalista classe média. Quando percebemos que nos últimos anos essa tem sido exatamente uma linha de produção fértil no cinema (Benzinho, Como Nossos Pais, Domingo, Que Horas Ela Volta?, entre outras dezenas de exemplares), chegamos a conclusão que todos parecem ter uma história pra contar entre os chamados “filme de almoço de domingo”. Ela e Eu, na competição do Festival de Brasília 2021, é e não é apenas mais um desses, dependendo de como se olha para a produção.
Dirigido pelo ascendente Gustavo Rosa de Moura (de Canção da Volta), o filme poderia ser apenas mais um dessa seara se o cerne de sua narrativa não fosse também um suave drama médico em torno de sua personagem-satélite, Bia. Então ao redor desse conceito que só se desgasta caso os dramas apresentados forem exatamente os mesmos de algum outro – o que não é necessariamente o caso de nenhum dos títulos citados acima – reside a trajetória de recuperação de uma mulher que passou mais de 20 anos em coma, e se vê às voltas com a jovem mulher que seu bebê se tornou, seu marido agora casado com uma nova companheira, além dos cuidados consigo mesma e os ensinamentos que ela precisa readquirir.
É um híbrido, por assim dizer, entre escolas diferentes de cinema que acabam por se conectar com alguma eficiência, principalmente se levarmos em consideração que se trata de um roteiro sobre uma mulher em reconstrução. A partir dessa ideia, tudo que poderia soar vago, incompleto e gratuito ganha nova representação, tendo em vista que Bia já tinha um espírito livre (pelo pouco que é investigado), e renasce exatamente pelo mesmo viés, talvez ainda mais agudo. Então, ainda que pareça forçado que seu médico não surja em mais do que uma rápida cena, todo o resto ser um borrão que esbarra na personagem parece um problema menos grave do que seria em uma narrativa outra, com demandas menos lúdicas.
Existe liberdade na concatenação dos elementos em cena, tendo em vista que uma aura de caos prestes a eclodir está o tempo todo à espreita. Tanto a inspirada direção de arte de Dina Salem Levy, que insere esse tom naturalista em uma visão mais artística sempre com muita elegância e propriedade, quanto a banda sonora do filme, que mixa lixadeiras de marcenaria com um frequente retorno ao mar, passeiam pelos lugares que o filme propõe sempre de maneira inventiva e orgânica com suas possibilidades, que parecem verdadeiramente infinitas. A cacofonia acústica e visual combina com um filme que parece pairar acima de uma redoma natural, sem perder a conexão com essa característica.
O roteiro escrito por Moura, Leonardo Levis e a própria protagonista Andrea Beltrão precisaria de um pouco de concretude, talvez de laços mais amarrados com suas ambições, porque o retorno de Bia é tão fascinante que merecia uma dedicação especial, quando o filme entende que esse mesmo retorno precisa reconfigurar de fato todo um núcleo, saltando uns na frente dos outros sem muita cerimônia. Com a qualidade que todos são apresentados e vestidos por um elenco iluminado, essa saída sorrateira de não se fixar a ninguém por muito tempo acaba nos fazendo lamentar por todos em cena, que mereciam ainda mais, e já rendem demais.
A despeito do insano talento de Eduardo Moscovis, Mariana Lima, Karine Teles e da jovem Lara Tremouroux, Andrea Beltrão suga a energia de tudo à sua volta, que parece gravitar e reverberar a beleza do que é composto pela atriz. Em um processo complicado que inclui gestual completo, da fala e do andar até o olhar e as diferentes fases de arranjo para sua personagem, Beltrão consegue nunca soar ridícula ou artificial quando tudo em cena podia arrastá-la para esse lugar. Atriz gigantesca que prova seu valor em todas as artes há mais de 30 anos, o alcançado aqui é um novo degrau de estupefação do público, que não consegue alcançar o tamanho do ofício e da dedicação em cena. A atriz domina cenas quase impossíveis, às vezes sem ter muitos diálogos ou interações, além de destruir em um dos momentos mais tocantes recentes, um encontro com Moscovis que redefine anos de uma relação fragmentada.
Ela e Eu parece se debruçar exatamente nesses estilhaços que são jogados pela narrativa, sem muita certeza do que é cada uma dessas sequências. Não há bagunça no amontoado de indecisões que jorram do filme, porque ele segue uma lógica que a própria personagem central representa, e que seu título deixa vaga de representação no “eu”, que são todos os que a cercam. Apesar de escorregar no melodrama talvez com mais ênfase do que deveria, o filme acaba por se dedicar de maneira delicada a seu universo rachado, cuja cola faz questão de mostrar que suas imperfeições se farão notáveis sempre quando forem olhadas, constrangidas e conscientes.
Um grande momento
O aniversário de Carol