Crítica | Festival

Ninho de Pássaro

Hora de reiniciar

(Mare's Nest, GBR, FRA, CAN, 2025)
Nota  
  • Gênero: Fantasia
  • Direção: Ben Rivers
  • Roteiro: Ben Rivers
  • Elenco: Moon Guo Barker
  • Duração: 98 minutos

Crianças recitam falas herméticas sobre desaparecimento, linguagem e o fim de uma existência. Há algo no tom, no o infantil que se encaminha ao último recurso da voz e no ritual que sobra quando a ação já não nos suporta mais. Essa infância pós-humana que Ben Rivers inventa em Ninho de Pássaro não é uma fase da vida, é um estado do mundo, o retorno à origem como último gesto antes do esquecimento. As vozes que falam parecem ecoar um idioma anterior à razão, talvez o que restou quando a palavra se descolou do corpo e passou a existir sozinha.

O longa não se preocupa em narrar, mas em seguir. É um cinema do resíduo, um inventário de sons, ruínas e intervalos. Rivers filma como se tentasse registrar a experiência da linguagem depois da catástrofe, uma arqueologia do sentido em tempos em que o significado já não basta. Cada plano é uma busca por permanência – da luz, do corpo, do gesto – diante da certeza de que tudo o que se pode fazer é lembrar sem ter memória.

A menina que atravessa desertos e montanhas carrega a imagem do que resta da humanidade. Sozinha, ela move o corpo como quem ensaia a sobrevivência. O filme transforma esse deslocamento em pensamento e caminhar é a única filosofia possível quando não há mais história. A estrada substitui o discurso e o horizonte, o argumento. Como nos mitos mais antigos, o movimento não leva a um lugar, mas cria o próprio espaço ao se repetir.

O diretor organiza o tempo como matéria palpável. Há em Ninho de Pássaro uma duração que se dilata, um convite à espera que lembra Tarkóvski, mas sem o sagrado; pois o que existe aqui é matéria, não fé. Enquanto se quer registrar o instante em que o real começa a se desfazer, a câmera, paciente, apenas observa. O cinema torna-se testemunha da lentidão do fim e, nesse gesto, há algo de ética, algo de amor.

Mas se há morte, há também invenção. A criança que fala entre pedras e ventos se transforma em mito de recomeço. A humanidade começa de novo, sem linguagem herdada, sem símbolos fixos. O olhar do filme para essas pequenas figuras errantes é quase compassivo, pois nelas, o mundo reaprende a respirar. A inocência aqui não é pureza, é resistência.

A filosofia de Ninho de Pássaro é a da continuidade pela ausência. O que o cinema de Rivers propõe é a sobrevivência do olhar quando já não há nada para ver. Um olhar que se volta para dentro da matéria, que torna a paisagem reflexo do pensamento. A luz, nesse sentido, não revela, vela. Ilumina o que já foi e o que nunca será.

O fim, quando chega, não é conclusão, é passagem. A menina sorri ao volante como quem reconhece a solidão e a aceita. E é nesse sorriso que o filme chega a seu ponto: a humanidade não acabou, apenas esqueceu como falar. E é preciso começar de novo, com as ruínas.

Um grande momento
Falando em línguas

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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