Cinema em linhasFestival de Brasília

Entre mortos e feridos

Festival de Brasília tem edição tumultuada e deixa poucas esperanças

Acaba hoje (1°) o 52° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Foi uma edição tumultuada, marcada por equívocos que começaram muito antes do dia da abertura e foram desde o não saber fazer até usurpações do espaço público com posturas autoritárias incabíveis em um festival de cinema. 

Antes de falar das mazelas, porém, é preciso falar do trabalho de várias pessoas que, mesmo com todos os absurdos e tentativas de transformação pela cúpula do festival, se dispuseram a tentar evitar uma catástrofe ainda maior, com sua experiência e muita boa vontade. Até conseguiram, cada uma em seu espaço e em sua especialidade, e merecem todo o reconhecimento por isso, mas equívocos graves e consecutivos baquearam a edição de tal modo que é impossível olhar para o festival e não olhar para eles.

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Tem que mudar isso aí, tá ok?

Vale começar do início. O Festival de Brasília é público, uma realização do governo do Distrito Federal. Assim, está sujeito a uma série de medidas burocráticas para que aconteça. A demora nas providências só pode ser explicada por duas possibilidades: ou não se tem ideia do que fazer depois das trocas desastrosas, comuns nas novas gestões do atual momento político, ou não se quer que o festival aconteça. O resultado do descaso foi um festival fora do tempo, num final de novembro, comprometendo a seleção e a participação dos filmes.

Um segundo equívoco vem com a escolha de uma equipe de coordenação que não fez questão nenhuma de olhar para trás, ignorando boas práticas e políticas adotadas em mais de meio século de existência do evento. Pouca atenção à imprensa convidada, que era quem daria as notícias do festival; fim de iniciativas que buscavam uma maior representatividade, como o prêmio Zózimo Bubul, em parceria com a APAN; a deturpação de outras iniciativas em colaboração, como foi o caso da Medalha Paulo Emílio Sales Gomes, antes definida em parceria com a Socine, Abraccine e ABPA, foram alguns dos exemplos dos contrassensos.

A curadoria também seguiu o mesmo caminho. O quarteto de curadores, desde as primeiras entrevistas, indicavam a vontade de trazer o cinema comercial para o festival. Um evento para o público médio, diziam, esquecendo-se de que um dos principais objetivos de um festival é a formação de público, um público que, 52 anos depois, vai ao Cine Brasília sabendo o que vai encontrar e isso não mudaria de um ano para o outro. Ainda que a ideia fosse equivocada, eram pessoas querendo fazer com que o festival não fosse ainda mais absurdo em termos de seleção, a boa intenção era notória, mas fazer curadoria é mais do que exibir títulos que você gosta, é mais do pensar o cinema segundo a sua única crença. É conhecer o seu festival, o seu público; é saber que os filmes vão além de você mesmo.

E talvez no reforço esteja o que salvou um pouco a seleção, quando pessoas com essa bagagem e essa percepção curatorial chegaram para ajudar no visionamento e seleção dos filmes. Não foi algo que resolveu, mas certamente preveniu desastres ainda maiores. Mas o equívoco já estava formado. O fim do ineditismo e o atraso na realização da edição fizeram com que filmes já vistos e premiados estivessem em competição. Quem tentava dar conta da diversidade de linguagem prevista para o programa principal foram as mostras paralelas, algumas apresentadas em horários impossíveis, como a sessão das 10h no Museu da República, concomitante aos debates e às rodas de negócio no ambiente de mercado e vistas por pouquíssimas pessoas.

Imagens terríveis

A seleção, ponto principal de qualquer festival, já problemática, porém, estava longe de ser o que pior aconteceria em Brasília. Num festival público, em um espaço público como o Cine Brasília, um ator foi impedido de ler uma carta de protesto contra o secretário da cultura. A cena do segurança entrando no palco e se aproximando do ator de maneira constrangida é uma das mais tristes da história do festival. Para completar, o microfone foi desligado e a carta só foi lida dias depois pela equipe do filme A Febre, durante a apresentação do longa.

Dias depois, durante a apresentação de um dos longas, um dos coordenadores do festival, o de relações institucionais, achou por bem exigir o começo do filme durante a apresentação e exaltou-se, de pé, berrando palavrões e ameaças, contra um grupo de mulheres que o repreendeu. Tudo isso sob os olhos de um número reduzido de imprensa, mas que fez questão de cobrar nos debates e em suas publicações um posicionamento do festival, que nunca chegou.

Com o fim do festival, os bons longas e curtas, sim, havia alguns, e qualquer ponto positivo na realização acabaram sendo soterrados por eventos como estes. Diferente do que anda circulando pelas redes, houve possibilidade de cobrar e de responder, inclusive com uma bela manifestação das mulheres do audiovisual presentes, mas a ferida ainda vai ficar por muito tempo. É triste que o 52º Festival de Brasília termine dessa maneira, com uma edição que ficará marcada pela censura, machismo e pela falta de experiência. Mas o pior mesmo é que, nesse desgoverno em que se vive, as próximas edições podem ser ainda piores. Em todos os sentidos.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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