Crítica | Festival

Evento de TV

No horário nobre

(Television Event, AUS, 2020)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Jeff Daniels
  • Roteiro: Jeff Daniels
  • Duração: 91 minutos

Os anos 1980 também foram marcados pela insanidade política. Essa polarização de hoje estava presente e tinha cores conhececidas, o inimigo estabelecido era o mesmo: o comunismo. Era a Guerra Fria e a ameaça era a nuclear. A salvação, republicana, vinha a cavalo, na forma de um antigo herói dos filmes de western. Sim, os Estados Unidos tinham como presidente o ator Ronald Reagan. Sua política era ganhar dinheiro em cima da paranoia negociando armamento e tecnologia nucleares e determinando ao mundo sua supremacia com a escala de seu poderio bélico. O Dia Seguinte, surpreendente filme do canal de TV ABC lançado em 1983, fala sobre o absurdo de se investir nesse tipo de tecnologia sem se considerar os seus efeitos no mundo. O documentário Evento de TV fala sobre o que foi fazer o telefilme no momento em que o governo investia abertamente na corrida armamentista e contrariando toda uma lógica de marketing das empresas de comunicação.

Antes de entrar no filme, é bom fazer um apanhado rápido desses dois pontos específicos. Sobre as armas nucleares, é sabido que tudo começou na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos cometeram o maior crime contra a humanidade da História ao lançarem bombas atômicas contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki, matando indistintamente mais de 245 mil pessoas. Daí em diante, disputou uma corrida insana de anos com a União Soviética para saber quem teria a bomba capaz de destruir a terra mais vezes e protagonizou momentos tensos, como a crise dos mísseis de Cuba, no início dos anos 1960. Quanto à televisão, o que se via nos anos 1980 não era tão diferente dos dias de hoje. O dinheiro entra com os anúncios, o que naturalmente limita o conteúdo. Assuntos que confrontam interesses governamentais são evitados (a depender do direcionamento ideológico da emissora, claro), toda uma cadeia de diretores e presidentes da rede opina sobre o que pode ou não ser exibido, há todo um cuidado e atenção com o que pode ferir ou agradar o interesse dos patrocinadores.

Ou seja, toda uma máquina que, muito mais do que entreter, está preocupada em ganhar dinheiro e, para isso, precisa achar o equilíbrio entre o interesse do público e o interesse das marcas sem chatear ninguém pelo caminho. O que Evento de TV mostra é que O Dia Seguinte chateou todo mundo, seja na própria emissora, seja nos anunciantes ou mesmo no governo. O telefilme é a espinha dorsal do longa dirigido documentarista Jeff Daniels — seu primeiro não biográfico, depois de levar às telas as histórias da ativista uigur Rabia Kadir, da terrorista Shelley Rubin e do jogador de futebol Héritier Lumumba — e traz muito material para ser conhecido, com curiosidades de set, soluções de produção, intrigas na leitura do roteiro e na montagem. Coisas que qualquer cinéfilo adora encontrar pela vida, ainda mais de um filme que, de certa maneira, marcou a sua época como foi o caso de O Dia Seguinte.

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Mais do que isso, para além do que todo interesse cinéfilo e de enfrentamento ideológico e político por trás da obra documentada, há um precioso trabalho de resgate do período. Daniels vai além da intenção do executivo Brandon Stoddard, do diretor Nicholas Meyer e do roteirista Edward Hume, que viram no filme uma real chance de assumir uma posição contrária às armas nucleares, e retrata toda uma movimentação nacional contra a política de Reagan. Embora a luta contra o comunismo seja uma marca pessoal do ex-presidente estadunidense, inclusive com uma doutrina que leva o seu nome, e o início de seu governo tenha sido dedicado ao incremento da tecnologia, desenvolvimento e alocação de armamento nuclear — com incidentes recentemente descobertos que poderiam ter causado a temida guerra –, a imagem que ficou dele foi a da assinatura do tratado com Gorbachev, que determinou a destruição, pelos dois países do arsenal de mísseis de alcance intermediário e de menor alcance, iniciando o fim da Guerra Fria. Das manifestações populares pouco se fala.

Porém, elas foram gigantescas e vão aparecendo em Evento de TV como uma espécie de justificativa para não só demonstrar as tentativas de explicação desajeitadas — e pouco crentes — dos representantes do governo à época, como as tentativas de intromissão no próprio filme. Há muito da confusão entre a obra e os eventos extra-obra e a costura de tudo é interessante. Há momentos muito tristes, como quando a produtora fala sobre a pesquisa e diz que um dos filmes-referência foi Hiroshima, Meu Amor. A angústia de, por mais precisa que seja a tentativa de reproduzir a destruição, isso jamais chegar a se parecer com o que fizeram com milhares de pessoas inocentes. E depois isso aparecer ressignificado, com o resgate de uma reportagem da exibição do filme em Nagasaki e uma sobrevivente entrevistada ao sair da sessão.

Evento de TV é um filme de momentos, muitos momentos. “Você não pode mostrar isso assim na televisão!”, diziam os executivos. “Mas uma bomba atômica faz isso!”, respondia o diretor. “Isso não pode ir ao ar”, dizia o executivo de marketing. “Vai ao ar de qualquer jeito”, dizia o executivo de programação. E foi! No horário nobre, quase sem patrocínio, mais foi. Uma parte da História que merece ser conhecida. Até porque loucos para gostar desse tipo de poder não faltam por aí. Lá na Rússia tem um e o outro acabou de sair do poder. Os dois, inclusive, retomaram essa corrida.

Um grande momento
A senhora e o policial

[26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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