Crítica | Outras metragens

Fantasma Neon

O trabalho, o limbo

(Fantasma Neon, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama, Musical
  • Direção: Leonardo Martinelli
  • Roteiro: Leonardo Martinelli
  • Elenco: Dennis Pinheiro, Silvero Pereira
  • Duração: 20 minutos

Parece que foi ontem que a carreira de Leonardo Martinelli se iniciou, aqui nesse mesmo Cine PE, mas lá em 2018. Seu Vidas Cinzas saiu daquela edição como o grande vencedor da competição principal de curtas, e desde então raro é o filme de Martinelli que saiu de um festival sem o prêmio de melhor filme – ou sem prêmios. Corta para cinco anos depois, e Martinelli é selecionado para Locarno e, ao contrário das expectativas, ganha o Leopardo de Ouro da categoria. Não, nada disso tem a ver com a qualidade de Fantasma Neon, que após Locarno vem fazendo o ‘rapa’ no Brasil também, por onde passa, mas tem tudo a ver com uma carreira cuja ascensão não parece ter limite, e que aqui encontra novo auge. 

Não há ausência de inquietação com o jovem diretor. Ele começou com uma clara identificação com o cinema de Kleber Mendonça Filho, mas no filme seguinte (Lembra) já tinha partido para outras paragens, no posterior (Copacabana Madureira) parecia aprimorar seus dois primeiros filmes, e na sequência (O Prazer de Matar Insetos) já contava com uma obra absolutamente curiosa, e diversa. O espectador que se curvou encontra um autor em formação, com certeza, mas do qual não se pode deixar de encontrar encanto e sede. Martinelli é uma máquina tão potente de releituras que rapidamente já criou uma rede de segurança para sua obra, onde a fabulação estética, narrativa ou imagética nos permite encontrar sempre um desdobramento novo capaz de surpreender. 

O que então é feito em Fantasma Neon corresponde a esse movimento de encontrar uma voz particular, que já não está mais no futuro, mas no absoluto presente. Sua ainda curta carreira nunca foi carente de personalidade, mas aqui o salto é superior ao visto nas quatro vezes anteriores. Na condição de estar assistindo ao filme “atrasado”, depois de saber que vários dos meus colegas já o encontraram um punhado de vezes, adentrar o filme é como observar um coração exposto, batendo vivo, pleno de suas atividades. Há o fascínio pela descoberta, há a certeza de não estar diante de algo prosaico, e também há a certeza de tatear uma narrativa que continua a costurar reverberações múltiplas, mas que enfim encontra a certeza de uma rota particular.

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Não é como uma exploração da periferia, sob o qual poderia ser acusado, mas de observar a mecânica do trabalho e das explorações provenientes do mesmo, ainda que se utilizando nesse lugar de uma classe periférica – exatamente os carros-chefe da vampirização de qualquer setor econômico. Fantasma Neon também evidencia o que se formou através da pandemia, que retirou as oportunidades para o jovem preto e em seu lugar, não serviu nada. Ao não permitir dar rosto ao topo da pirâmide (que só é visto por uma vez e de costas), Martinelli abraça não apenas o seu protagonista, mas toda a esfera que representa. A acusação que poderia ser mais comum então não caberia justamente porque, paralela à exploração, o filme se dedica a celebrar essas pessoas, seus corpos, sua vivência e o que faz dela um manancial de potência. 

Não posso deixar de observar a delicadeza de, não apenas compor uma trilha original para um curta metragem, como fazê-lo em resultado acima da média, onde muito do que está implícito acaba sendo “revelado” pelas canções. É uma abordagem que usa a tradição do gênero para se dizer responsável e capaz de tal, mesmo que a intenção principal seja desconstruir os conceitos que temos do musical por dentro. Difundindo também na trilha e nos diálogos as possibilidades levantadas pelo onírico, quando a figura-título revela sua identidade, Fantasma Neon não se preocupa em normatizar suas decisões. Tais são assumidamente experimentais, e promovem uma balbúrdia honesta, uma inconclusão saudável que coloca seu diretor numa direção híbrida das mais instigantes. 

O diretor rasga o musical tradicional para escrever o que, para ele, deveria estar no cânone. Saem Fred Astaire, Gene Kelly e Ginger Rogers, e entram os entregadores de aplicativo e sua contemporânea forma de se expressar – o corpo é uma extensão do ritmo, e surge na tela como a batida do funk é capaz de comunicação. A partir do momento que percebemos o cinema de gênero pedindo passagem, fica clara a provocação de Martinelli. Os códigos existem e podem ser redefinidos de acordo com cada origem, e cada necessidade, para não apenas provocar novas narrativas, mas principalmente para tornar eterna sua aplicação. O que adianta uma retificação histórica quando não podemos eleger novas formas de acessar o que foi mitificado? Pedras talhadas só fazem sentido quando quebradas, para dar lugar ao novo. 

O novo de Martinelli em Fantasma Neon não é reconfigurar sua carreira, ainda tão tenra, mas encontrar uma maneira de fazê-la relevante, narrativamente. Quando ele molda seu John Travolta tupiniquim para um jovem que todo o dia pode morrer ao pedalar, que estampa na pele de seu protagonista a cor da perseguição secular, Martinelli prova o início da maturidade. Ao entender de maneira humilde que a arte só pode ser para todos, se não será para ninguém, o diretor livra seus personagens da carne e eleva seus espíritos. Porque não estão mais ali em cena alguém que tem sonhos, nome, endereço e o mesmo plano que nós, mas uma ideia de corpo, uma ideia de futuro, uma ideia de progresso particular, além do que está. E ser, em definitivo. 

Um grande momento

O diálogo que revela futuro e passado

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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Joao Americo Silva
Joao Americo Silva
05/01/2023 11:55

Eu vi o curta, realmente fantástico

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