- Gênero: Drama
- Direção: Flávia Neves
- Roteiro: Flávia Neves, Melanie Dimantas
- Elenco: Bárbara Colen, Eucir de Souza, Fernanda Vianna, Nena Inoue, Kelly Crifer, Allan Jacinto Santana, Vilminha Chaves, Fernanda Pimenta, Timothy Wilson, Typyire Ãwa
- Duração: 100 minutos
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Assim como em Propriedade, o teor político que o cinema brasileiro vem concentrando, em grande parte em produções vindas fora do grande eixo, também está concentrado em Fogaréu, filme vencedor de um prêmio do público no último Festival de Berlim. É normal pensar nesse prêmio, vide o aspecto popular que esses filmes têm no geral, e o longa de Flávia Neves tem em particular. É uma produção que verdadeiramente nos instiga a acompanhar, que vem cheia de símbolos imagéticos fortes, e que tem uma ambição de mostrar um recorte muito específico a respeito de uma região do país – no casal, a cidade de Goiás. Uma região que abriga muitas histórias ainda não contadas, mas que o cinema felizmente resolveu se debruçar nos últimos tempos.
Fogaréu é a estreia em longas de Neves, que saiu de Goiás para estudar cinema, mas que resolve em sua estreia organizar um arsenal de informações a respeito do passado de sua terra, práticas arcaicas cruzadas com um olhar fantástico. Recheado de ecos de um passado que não cessa em ecoar, o trabalho da diretora em roteiro (co-escrito com Melanie Dimantas, de O Escaravelho do Diabo) é elencar as experiências de uma terra que insiste em manter viva tradições milenares ligadas a práticas escravocratas. Muito rapidamente, o contexto apresentado – em específico, a abertura do filme já diz a que veio, com uma apresentação local que remeteria a uniformes da Klu Klux Klan – nos desloca para o horror ancestral.
Enquanto trata diretamente das questões acerca da espinha dorsal, o filme consegue entregar sua narrativa com tranquilidade. É uma nova roupagem para o longa político que parte de questões familiares para adentrar o coração do país, literalmente – em sua paisagem urbana e no que tem de mais próximo à realidade. Já vimos personagens que reivindicam heranças e que precisam esbarrar em desmandos familiares, e já vimos produções onde políticos corruptos de direita defendem ideias retrógradas em muitos pontos para valer seu poder. Fogaréu é esses dois filmes em conjunto, conseguindo equilibrar muito bem seu olhar para ambos os lados, mantendo a coerência nas duas vertentes.
O problema do roteiro começa quando Fogaréu tenta conectar outros adendos em uma narrativa já robusta. Porque além disso tudo, Neves tinha como base de pesquisa a situação dos neurodivergentes locais, que são muito evidentes no estado, e ainda mais no interior. O surgimento de diversos asilos, a forma desordenada com que essas crianças eram geradas, e eventualmente dadas em adoção, isso tudo estava na pauta de Neves quando o desenvolvimento do projeto avançou. A verdade é que esse tema serve como uma escada para outros eventos que só causam aumento do trabalho da montagem, sem acrescentar à narrativa algo substancial como um todo. Com isso, parecemos estar diante de um projeto que precisaria de muitas revisões para chegar ao ponto crucial.
Com os excessos do roteiro, o grande problema da estreia de Neves é parecer nunca conseguir expor todas as suas questões na totalidade. São tantas dobraduras e camadas em seu desenvolvimento, que exatamente esse desenvolvimento soa comprometido. Não é o caso de uma possibilidade tratada em elipses, porque o filme nem se utiliza dessa ideia para estabelecer seu trajeto. O que fica mesmo claro é essa vocação para o excesso em Fogaréu, um filme com um acúmulo de boas ideias todas colocadas perfiladas, e se comunicando mutuamente. Quando fica claro que tudo não conseguirá ser apresentado a contento, o longa começa a sair dos trilhos e o empilhamento dessas ideias se avolumam.
Em meio a diálogos demasiadamente expositivos, daqueles que são ditos a pessoas que já conhecem a narrativa só para que o espectador saiba os eventos, ou seja, nada orgânicos, Fogaréu mantém em seu elenco nomes o suficiente para chamar atenção. E entre estrelados como os de Bárbara Colen, Eucir de Souza e Fernanda Vianna, são os de Nena Inoue e Timothy Wilson a chamar atenção. Ela, premiada no teatro, enche a tela com sua presença luminosa e uma entrega sem igual, e consegue nos encantar com um desdobramento carregado do melodrama; ele, um jovem com espectro autista, prova o valor dos profissionais que estão em situação semelhante a dele, e emociona com um tipo, digamos, inusitado. Ambos conseguem extrair o melhor diante de um roteiro que dificulta seus trabalhos; essencialmente o elenco, no entanto, sai da experiência como vencedor diante das adversidades.
Um grande momento
Fernanda e Mocinha sentadas na escada
Essa crítica deixa explícito como o fast food cultural empobrece o paladar a qualquer sabor que foge do eixo norte-estadunidense e sul(leste) brasileiro, ou ainda o eixo rio-são paulo. Preguiça e vergonha do privilégio daqueles que conseguem se manter limitados a sala escura…