Crítica | Festival

Foi Apenas um Acidente

Escalada

(یک تصادف ساده, IRA, FRA, LUX, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama, Suspense
  • Direção: Jafar Panahi
  • Roteiro: Jafar Panahi
  • Elenco: Vahid Mobasseri, Ebrahim Azizi, Mariam Afshari, Mohamad Ali Elyasmehr, Hadis Pakbaten, Majid Panahi
  • Duração: 101 minutos

Justiça e vingança: qual é a diferença? Há pelo menos três filmes que Jafar Panahi saiu de um lugar habitual (e muito bem sucedido) em sua filmografia, inaugurando uma nova fase, como já o fizera antes. Esse novo aspecto versa acerca de situações-limite envolvendo pessoas comuns, que precisam ser resolvidas a contento, correndo o risco de termos uma tragédia em curso prestes a acontecer. Seu novo filme, Foi Apenas um Acidente, faz parte desse trio ao elevar a composição do cineasta para esse lugar, porque aqui efetivamente não há como impedir o destino que se coloca no trilho dos eventos. E aí, a pergunta que abre o texto não é feita efetivamente na tela, mas não sai do racional do espectador, que se indaga sobre tais limites e as consequências de cada ação tomada, pois nada é banal.

Nada que está sendo debatido pelo genial cineasta iraniano é exatamente um lugar novo para o cinema mundial, mas é para ele, que aqui parece se comunicar com seu conterrâneo Asghar Farhadi. Sem a visão do melodrama que o diretor de O Passado carrega consigo, Panahi tem urgência para contar o que é desenvolvido aqui, mas isso em um registro que o autor mesmo já se acostumou a acessar. Ou seja, é um avanço profundo em relação ao primeiro cineasta a surgir a bordo de sua filmografia, no fim dos anos 90, com o já clássico O Balão Branco. Independente dos resultados, é feliz constatar um diretor movido pela diferença, fugindo dos clichês que ele mesmo contribuiu para criar. Essa pulsão comprova sua habilidade de reinvenção, em uma carreira que se estabeleceu na excelência continuada.

Foi Apenas um Acidente abre com um ritmo mais contemplativo, e é uma tarefa inglória tentar fugir, nesse tomo inicial, de uma lembrança de Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami. Ambos vencedores da Palma de Ouro em seus respectivos anos, acompanham a jornada de seus protagonistas rumo ao reencontro com a morte, em decisões que seus países desaprovam na totalidade. Mas enquanto o filme de 1998 versava sobre as possibilidades do suicídio, aqui estamos diante de uma lembrança fugidia da tortura, em igual recorte slow. Essa primeira parte é a que mais provoca, e unida ao desfecho, também nos leva a rememorar o cinema romeno mais radical, tal qual Polícia, Adjetivo. A partir da segunda parte, a Romênia ainda funciona como inspiração, mas partindo então para o caminho dos absurdos de títulos como A Morte do Sr, Lazarescu

Apesar das procedências, Panahi tem três décadas de personalidade comprovada, e volta a exercê-la em uma cadência particular, ao adentrar gêneros e ritmos, para não deixar o espectador livre de novas sensações, refém das descobertas de cada nova entrada, e percebendo a beleza das lacunas. Ainda ensinando ao séquito de contemporâneos, o diretor constrói com parcimônia cada novo capítulo da epopéia que filma. De tempo em tempo, muda por completo nossa percepção acerca da natureza de seus personagens, que passam por mutações que os faz adquirir um senso de retidão. Os campos de leitura, assim sendo, não se metamorfoseiam, mas complexificam um universo crucial da história de países ditatoriais, aqueles que não conseguiram superar os malefícios da prática da tortura, porque seus perpetradores continuam soltos, e em segredo silencioso. 

Sem perder o discurso, Foi Apenas um Acidente se recusa a ser refém do mesmo. Isso porque o filme não se debruça apenas sobre os aspectos políticos realizando proselitismo; isso acontece naturalmente, porque os fatos são essencialmente de ordem política. Existe a coragem de Panahi, por exemplo, em esgarçar o drama até se configurar uma comédia de erros absurda na nossa frente. O riso não vem exatamente da comicidade de cada cena, mas do desconforto que tais situações se apresentam para os personagens. Então vamos do horror da concretização da vingança e das consequências de cada ato não pensado, até o riso nervoso pela destemperança e pela escalada de desespero ininterrupta. 

O que marca essa nova incursão de Panahi é a ligeira extensão de seus registros narrativos. Passando pelo domínio do cineasta nos primeiros 25 minutos até chegar no avassalador último plano e sua mescla de sons e medos (que serão eternos), a edição de Foi Apenas um Acidente é tão interessada em enervar o espectador – e o faz de maneira ampla – que não percebe que, algumas cenas ameaçam escapar do desespero para a redundância. Além disso, trata-se de um filme composto por tipos concentrados, e por isso mesmo é desconcertante perceber que ao menos um dos cinco personagens em cena, nada tem a fazer. 

Ainda no miolo, Panahi vai descortinando ao espectador como fronteiras em ritmo de ultrapassagem tendem a não ter mais retorno. Foi Apenas um Acidente não exime o público de julgar o que seus personagens julgam, e acabar também sendo algo de julgamento, ainda que particular. O autor ainda promove a criação de planos que nascem icônicos, como a chegada inicial ao deserto, ou o jogo de câmeras do plano de abertura, que é fixo em um pára-brisa, até se descolar dali e acompanhar o personagem-chave. O interrogatório final também se amplifica com o close em vermelho, mas essa igualmente uma cena robusta, que pedia uma micro economia, que fosse. Porém, quanto mais o tempo passa da sessão, mais é a percepção de que fica conosco suas potências. E implícita mensagem pacifista, que sempre será posta em cheque em tempos de polarização, ameaças, guerra e olho por olho, dente por dente. 

Um grande momento

Vigiando para capturar 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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