Crítica | Festival

We Might As Well Be Dead

(We Might As Well Be Dead, ALE, ROM, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Natalia Sinelnikova
  • Roteiro: Viktor Gallandi, Natalia Sinelnikova
  • Elenco: Ioana Iacob, Pola Geiger, Jörg Schüttauf, Siir Eloglu, Susanne Wuest, Knut Berger
  • Duração: 93 minutos

Há pouco tempo foi muito estranho olhar para o lado, para dentro de nossas casa, para as pessoas mais próximas, e encontrar traços do inimaginável, daquilo que mais execrávamos e parecia tão longe da nossa realidade. No Brasil, ideias e ideais absurdos e reprováveis ganharam força e ecoaram ao nosso lado, tornando o conhecido irreconhecível. Mas o evento sentido aqui não teve nada de regional e a ideologia fascista com a validação de todo e qualquer discurso de ódio, supremacista, classista, machista e racista, sobrevive até os dias de hoje onde quer que se esteja no mundo. O cinema olhou para isso muitas vezes, de teorias da origem a previsões de um futuro catastrófico, e outros títulos que se dedicaram à simples vivência do período. We Might As Well Be Dead também é sobre isso, mas faz uma abordagem diferente.

Em algum lugar isolado e de difícil acesso, existe um condomínio onde muitos querem estar pela possibilidade de viver em uma sociedade dita perfeita. Em uma comunidade autogerenciada, nesse estranho condomínio com todo jeito de penitenciária de luxo, a segurança e o bem-estar estão garantidos. Para isso, todos que moram no lugar, passam por um processo seletivo minucioso que vai desde o histórico criminal e psiquiátrico e uma entrevista presencial até uma deliberação pela assembleia de moradores pela aceitação ou não da candidatura à vaga.

A responsável pelo processo é Anna, em uma atuação irrepreensível da romena Ioana Iacob, de Eu Não Me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros. Ela é a gerente e uma espécie de vigilante do local, que cuida de todos e é a responsável pelos avisos diários nos auto falantes, que incluem a lembrança constante das regras de convivência, com a repressão de qualquer ato “anti-social, imoral ou imprudente”. O que a personagem vive nos ambientes comuns do condomínio é muito diferente daquilo que acontece dentro de sua casa, onde a filha adolescente, que acredita ser amaldiçoada, resolveu trancar-se no banheiro.

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Há esse misto de privado e público, do indivíduo e do grupo, em We Might As Well Be Dead, mais do que isso, essa constatação do humano por trás de qualquer agrupamento social, mas o que mais interessa é como, no desenrolar da história, se percebe o nascimento dos comportamentos extremistas e exclusivistas que levam à formação de novos núcleos. Num grupo que vai percebendo-se formado por pessoas de várias nacionalidades, talvez branco demais, mais ainda assim, onde todos são possíveis sujeitos de uma ordem que rejeita o estrangeiro, aquele refúgio babélico vai reproduzir o status quo do qual se tentou escapar. 

Olhar para essa degeneração conhecida, que ilustra o surgimento de algo e a repetição de ações antes reprováveis é interessante, mas ganha profundidade por expor a origem de tudo em contratos sociais assumidos que nunca negaram sua real natureza. O homem é lobo do homem. Há uma clara diferença entre as picaretas que remetem à fuga de uma sociedade hostil e os tacos de golfe que representam o julgamento e a exclusão de outra, mas as mãos que os seguram são as mesmas. O contrassenso leva o questionamento do surgimento de ondas reacionárias a um outro lugar.

Nesse caminho percebe-se que o aparecimento de ímpetos fascistas, esse brotar do desconhecido em pessoas tão próximas tem um funcionamento diferente, pois tudo sempre esteve ali. We Might As Well Be Dead, em seu microuniverso, espelha uma sociedade onde ações tidas como incompreensíveis e inesperadas são validadas por toda uma estrutura sempre aceita por todos, ou a maioria. Quando ondas antidemocráticas e autoritárias surgem, trazendo seus defensores e não se entende o porquê deles — e dos nossos — estarem ali, ninguém se lembra disso. É olhar para o outro ignorando tudo o que se aceitou de bom grado para chegar até aquele ponto, as restrições, as normas estritas, o isolamento, os julgamentos e a divisão. As tais normas que vão trazer proteção, segurança e garantir o bem-estar geral. No filme, elas são anunciadas no microfone e estão no poeta que pode viver ali na casa de máquinas e até na própria Anna em sua significância para o grupo. 

A diretora estreante Natália Sinelnikova, ela mesma uma refugiada judia da Rússia que mora na Alemanha, aposta nas cores frias para fazer o seu retrato dessa microssociedade e na amplitude para falar de não-pertencimento e angústia, nem sempre apostando no óbvio. Trabalhando com a luz, a fotografia de Jan Mayntz faz os jogos de privado e público e seus planos abertos marcam essa quase opressão do ambiente, assim como a assepsia da arte de Elisabeth Kozerski e dos figurinos de Marylin Rammert. A ironia é marca do roteiro assinado por ela e Viktor Gallandi, e incomoda por ir além da tela e mostrar o que está aqui do lado de fora, em forma menos estetizada, mas igualmente cruel e violenta, seja em causa ou em consequência. We Might As Well Be Dead entretém, mas muito mais do que isso, perturba, incomoda, e fica com a gente muito tempo depois de o filme acabar.

Um grande momento
Atrás da moita

[Tribeca Film Festival 2022]

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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