Crítica | Festival

Jay Kelly

(Jay Kelly, EUA, GBR, ITA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Noah Baumbach
  • Roteiro: Noah Baumbach, Emily Mortimer
  • Elenco: George Clooney, Adam Sandler, Laura Dern, Billy Crudup, Riley Keough, Grace Edwards, Stacy Keach, Jim Broadbent, Patrick Wilson, Eve Hewson, Greta Gerwig, Alba Rohrwacher,Josh Hamilton, Lenny Henry, Emily Mortimer
  • Duração: 132 minutos

O galã surge perfeito na tela, enquanto a vida fora do enquadramento é feita de compromissos intermináveis e uma solidão disfarçada. É no intervalo entre brilho e silêncio que Noah Baumbach constrói a jornada de um astro em fim de linha, interpretado por George Clooney. Alguém que deve conhecer de perto o ritual de ser amado por multidões e, ainda assim, voltar para casa sem saber o que fazer com o próprio vazio. A viagem pela Europa, o entourage de assessores, os reencontros incômodos com fantasmas do passado compõem um inventário íntimo da imagem masculina construída para durar e do homem comum que está por trás dela.

Há uma esperteza no gesto de escalação que merece destaque. Clooney interpreta um ícone enquanto comenta a própria condição de ícone, e Jay Kelly tira disso momentos de graça triste, um sorriso que funciona diante da câmera e tropeça na vida real. Mesmo que faça isso com humor, quando o personagem organiza memórias como quem reordena uma filmografia, a narrativa expõe a mecânica do galã profissional, feito para caber em todos os papéis, mas encaixado em nenhum. Baumbach, parceiro de roteiro de Emily Mortimer, aposta num dispositivo tradicional, com lembranças que irrompem como cenas já vistas, e é justamente aí que a máscara cai. O que sobra quando o corpo que sustentava o mito cansa e a persona não sabe como envelhecer?

O percurso do protagonista não é épico, é administrativo. Jantares, homenagens e tapetes vermelhos compõem um labirinto de cordialidade que esvazia qualquer afeto verdadeiro. A presença do agente atencioso, vivido por um Adam Sandler contido, reforça a ideia de que o sistema cuida de tudo, menos do homem que ele consome. Quando o roteiro vai e volta no tempo, procurando um ponto para mudar de direção, a sensação é de que o próprio Jay Kelly reconhece o limite do seu personagem. A vida foi editada em close bonito, mas as escolhas ficaram fora de quadro. Por todo o filme, há uma mistura de autorretrato e nostalgia; uma vontade de acerto de contas e, ao mesmo tempo, o conforto do lugar-comum.

Funciona melhor quando a mise-en-scène abandona o memorial de prêmios e se aproxima dos vínculos quebrados. As conversas com filhas, colegas e antigos amores expõem a contabilidade afetiva que a fama costuma empurrar para depois, sempre depois. Não há truque que compense o gesto perdido, nem piada bem colocada que substitua a presença, e a câmera observa a elegância como um hábito, encontrando por trás dela um homem que decorou respostas, mas esqueceu como se responde olhando nos olhos.

O ritmo é competente; os ambientes, orgânicos, desfilam como cartões-postais de um prestígio internacional que não serve para nada, e a montagem tenta costurar um fluxo de consciência que, por vezes, cai no conforto do flashback fácil. Há instantes em que a máquina de reverenciar a própria história se impõe, com escolhas que arriscam o sentimentalismo, mas o subtexto tem a sua força e chega ao ponto. O mito masculino do charme infalível envelhece mal quando precisa lidar com a intimidade, e a obra parece propor que a verdadeira crise não é da carreira, é da pessoa que a carreira inventou.

Talvez por isso Jay Kelly interesse mesmo quando vacila. Ver um ícone encenar a erosão do ícone tem algo de confessional e de cruel. O público que compra glamour também compra a queda, e o homem que sempre teve a porta aberta aprende que nenhuma leva direto para dentro. Entre a persona e quem ele é, sobra um corredor longo. E, nesse corredor, a fama não o acompanha. O galã continua belo, o mundo continua olhando para ele, e a solidão continua no mesmo lugar, ao lado dele. É um retrato incômodo porque de fácil percepção. A indústria promete eternidade, mas o corpo tem prazo. Entre uma coisa e outra, o homem tenta existir.

Um grande momento
Na floresta

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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