Crítica | Cinema

Depois de Ser Cinza

O risco das escolhas

(Depois de Ser Cinza, BRA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Eduardo Wannmacher
  • Roteiro: Leo Garcia
  • Elenco: João Campos, Silvia Lourenço, Branca Messina, Elisa Volpatto
  • Duração: 87 minutos

Existem formas de absorver uma obra que se pretende algum hermetismo. Geralmente não se cobra uma leitura estanque a qualquer tipo de material, mas quando as curvas de um projeto não se definem em uma ideia clássica, o jogo de interpretação passa a ser mais rico. Depois de ser Cinza, apesar de sua aparência sisuda e seu atravessamento meio afastado do espectador, permite que inúmeras brincadeiras sejam possíveis ao nos relacionarmos com ele. Como uma estrada com muitas bifurcações, vamos até uma certa encruzilhada para correr riscos permitidos, e assim comprovar o que o próprio filme não faz questão de posicionar. Temos quatro protagonistas, e uma infinidade de trajetórias possíveis para cada um deles, e na conexão entre eles ainda mais. 

Depois de ser Cinza tem uma curiosidade que não costuma ser apreendida em trabalhos com alguma assinatura autoral, que é sua multiplicidade de vozes. O filme é dirigido, escrito, produzido, montado e fotografado por cinco pessoas diferentes, o que facilmente poderia identificar uma situação de amplitude não desejada para que desse encontro nasça uma narrativa coesa. Além disso, a produção admite que suas protagonistas femininas tiveram livre caminho para identificar possíveis exageros ou problemas, e moldar cada personagem a sua visão particular e adequada. O filme que assistimos, no entanto, parece buscar essa polifonia desencontrada, que permite um mergulho diferenciado para cada um que o acesse. 

Ao mesmo tempo, é impossível não notar que esses cinco profissionais, todos homens, conduzem uma trama que é desenvolvida através de campos de percepção ou lugares de observação femininos. São três mulheres que conduzem a jornada desse herói, que está devidamente caído. Trata-se, de alguma forma, um grupo de homens olhando para um homem que está sofrendo, precisando de ajuda, sufocado em suas angústias, e que não culpabiliza nenhuma dessas mulheres por tal – ao menos, não frontalmente. Ao adentrar cada vez mais no campo de discussão, fica a forte impressão de que algo está fora do lugar em Depois de ser Cinza, ainda que muito pouco se fale sobre qualquer aspecto da condição feminina em cena. E isso, ao invés de ser um livramento para o filme, me soa como mais um ponto de problema do todo. 

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Sendo o projeto tão livre de correntes que o agarrem rumo a uma lógica fechada, fica o questionamento do porquê Leo Garcia situou sua narrativa com a centralidade no feminino. Não é o caso de nenhum homem mais poder realizar filmes com esse centro nervoso, mas tendo a ciência de que se tratava de um projeto com liberdade de compreensão e alcance, é impossível não se questionar a respeito. Porque muitas de suas andanças conceituais não são obra de um conhecimento de causa daqueles personagens, e porquê o personagem masculino de Depois de ser Cinza parece com necessidade real de ser salvo. Isso então liberaria a produção para investigar anseios que podem ser atrelados quase que exclusivo pelo sexo oposto ao de seus responsáveis? Admito que essas questões me deixam mais confuso do que com a trama aberta aqui proposta. 

O trabalho do quarteto de atores me parece muito à vontade com o que precisa ser feito, e se integra muito bem ao que está marcado para cada necessidade em cena. Silvia Lourenço (de O Cheiro do Ralo) mostra uma nova roupagem de seu talento, Branca Messina (de Jovens Polacas) confirma uma integridade artística que não para de evoluir e Elisa Volpato (de Bom Dia, Verônica) tem atitude e postura que quebram as duas outras personagens. Já João Campos (de Para Minha Gata Mieze) tem o trabalho que talvez exija mais dramaticamente, com sua ruptura emocional sempre à mostra; o ator dá conta. Não é problema de qualquer ator em cena algum possível descompasso de Depois de ser Cinza, mas independe deles também um carimbo qualitativo. 

O filme, além das questões muito expostas, não parece investigar muito seus personagens. Então isso também parece fazer parte do ‘modus operandi’ de seu roteiro, que na ânsia de deixar zonas “cinzentas” para propiciar um quebra-cabeça ao espectador, não cria uma conexão entre quem está de um lado e de outro da tela. Dirigido por Eduardo Wannmacher, Depois de ser Cinza não é tão imaginativo quanto gostaria de crer, porque o próprio filme não cria uma base acertada para a evolução de uma fabulação particular. É uma produção que acontece em tela, e deixa do lado de cá um espectador ausente de sentimento. 

Um grande momento

Manuela e Raul na cama, em seu último momento

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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