Crítica | Cinema

Medusa

Alienação misógina

(Medusa, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Anita Rocha da Silveira
  • Roteiro: Anita Rocha da Silveira
  • Elenco: Mari Oliveira, Lara Tremouroux, Joana Medeiros, Felipe Frazão, Thiago Fragoso, Bruna G, Bruna Linzmeyer, Carol Romano, Fernanda Lasevitch, Isadora Ruppert, Julianna Pimenta, Anita Chaves
  • Duração: 127 minutos

“Os seus filhos vão dizer que isso é mentira, mas você sabe que é verdade”. Essa é uma mensagem real e ela circulava ou ainda circula no grupos fechados de desinformação que existem e se proliferaram pelo Brasil de Bolsonaro rachando o país. Bom, Medusa não fala de pais que receberam essa mensagem, fala dos filhos também corrompidos e fala de um dos nichos corruptores, a igreja neopentescontal. Um espaço que usa as ferramentas tecnológicas, mas prescinde delas. Analisar o comportamento de seitas, na alienação e afirmação que chega com o senso de pertencimento é complexo e tem se tornado algo importante ultimamente. É curioso pensar que o novo longa de Anita Rocha da Silveira há 10 anos anos pareceria uma distopia dissociada da realidade e hoje, no rescaldo Bolsonarista, após a atrocidade de 8 de janeiro, seja tão palpável.

A obra é complexa em forma e conteúdo. Terror de primeira qualidade, traz à cena influências de várias escolas do gênero. O tradicional se une à energia de um cinema inventivo e pontuado pelo vigor de uma trama que transpira a juventude que retrata, algo ainda muito marcado – da maneira mais positiva possível – no trabalho da realizadora. Rocha da Silveira aposta nas cores e nas luzes, chama o neon para marcar o quadro, centraliza os corpos, os expõem e omite a depender daquilo que quer fazer sentir, e sabe bem como trabalhar com a trilha, seja no manejo do som ou na disposição das músicas. Em sua colagem pop impactante, cria o ambiente ideal para uma história que fala do presente surreal que está posto, mesmo que na ficção ele ainda esteja por vir. 

Medusa (2021)
Divulgação

No centro da trama está Mariana, vivida de maneira marcante por Mari Oliveira, uma jovem completamente envolvida pela comunidade evangélica da qual faz parte. Alienada como todos aqueles que estão ao seu lado, ela despreza o diferente e fecha os olhos inclusive para as próprias características que a diminuem, a principal delas: ser uma mulher. Seguindo cegamente a um líder que estimula a ignorância e abusa da fé cristã, acredita em fantasias delirantes, na violência como arma de conversão, e na exposição do mal e consequente disseminação do medo como principal instrumento de cooptação e controle. O tempo é o futuro de uma violência misógina “justificada” e que inclusive dá nome ao longa quando volta ao mito de Medusa, não àquele que se tornou mais conhecido, com a morte da górgona pelas mãos de Perseu. A Medusa de Rocha da Silveira, transmutada em uma enigmática personagem, é a bela e vaidosa sacerdotisa que dedicou sua vida à Atena e foi punida pela deusa por ter sido estuprada por Poseidon.

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Tendo sempre a fé por trás dos atos e eventos, o filme vai construindo o seu retrato da sociedade, delimitando os espaços possíveis e escancarando as estruturas. Da validação da “educação”, na figura da prima desconhecida que chega ao esvaziamento moral e ético dos defensores dos valores cristãos; ou da desvalorização do indivíduo pela estética à anulação do ser, sob muita maquiagem, pela manutenção de uma pretensa configuração de família ideal, tudo encontra o seu lugar no roteiro também assinado pela diretora, que ainda fala do uso da religião como arma política, no sentido mais literal da palavra. Medusa é um filme potente e que prende o espectador pelo tanto que tem a dizer, mais, por toda a sua proximidade e correlação com aquilo que, por mais descabido que pareça, acontece diante dos olhos de todos cotidianamente.

Medusa
Divulgação

Ao mesmo tempo em que se reconhece o contexto e as referências estéticas, que são tantas, choque, suspense e terror, como estão concatenados, fazem com que o filme tenha um andamento próprio, demonstrando a habilidade da diretora nesse que é seu segundo longa. Aqui, a temática chega mais contundente. Rocha da Silveira já havia tratado o patriarcado em Mate-me, Por Favor, seu título anterior e lá também estava a misoginia evangélica, ainda que abordada de maneira não tão central. E, sim, Medusa é um filme que olha para as mulheres em um universo calcado, por séculos e séculos, em normas e interesses de homens, e é muito potente ao encontrar a identificação de maneira tão irrefutável. 

Não apenas nesse ponto, pois o descolamento da realidade chegou a tantos setores da sociedade que o senso se perdeu e a verdade passou a ser relativa. Aquele futuro do exagero, entre a crítica e denúncia que a distopia pinta, já é o presente. Oxalá o encontro venha e, com ele, o despertar. 

Um grande momento
As preciosas

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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