Crítica | Festival

Memórias de um Esclerosado

Nossos sapos

(Memórias de um Esclerosado, BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Rafael Corrêa, Thaís Fernandes
  • Roteiro: Rafael Corrêa, Thaís Fernandes, Ma Villa Real
  • Duração: 75 minutos

É com felicidade que o cinema deveria estar recebendo cineastas como Daniel Gonçalves e Victor di Marco, responsáveis respectivamente por Meu Nome é Daniel e O Que Pode um Corpo?. Autores PCDs, premiados em suas obras exclusivamente pela qualidade que exibem em suas incursões, o Cine PE 2024 vê nascer mais um cineasta para ampliar o debate em cima da sensibilidade artesã que esses profissionais vêm lotando festivais e cinemas. Rafael Corrêa é um dos diretores de Memórias de um Esclerosado, ao lado de Thaís Fernandes, e seu olhar para sua obra (que não se restringe ao filme que está sendo porta-voz) é um respiro de renovação a uma cena que muitas vezes se mostra repetitiva nas questões que insiste em debater. 

Ainda que sua condição tenha uma ligação intrínseca ao autor que ele efetivamente é, porque está impressa na forma como ele disseca seus personagens (e a si mesmo), também a sua visão é devidamente imbuída das muitas características emocionais que essa mesma condição lhe lega. É evidente que Corrêa é um artista brilhante, e assim o seria mesmo que não acometido de qualquer enfermidade, vide os traços exuberantes e as narrativas surpreendentes que exibe como cartunista e desenhista. Mas Memórias de um Esclerosado, se realiza enfim um sonho que ele acalentava desde a infância, também revela as capacidades que ele adquiriu ao acessar os signos emocionais que a esclerose múltipla lhe apresentou. 

Não cabe apontar o velho chavão (pobre, inclusive) de parabenizar o diretor pela coragem de expôr sua realidade. A coragem aqui vem de uma ordem muito mais arriscada, que é a piscada de olho que Corrêa libera para o espelho ao se questionar onde estaria caso a enfermidade não tivesse chego até ele. Coragem, porque o diretor deixa escapar de que provavelmente ele poderia ter alcançado alguns níveis de irresponsabilidade e/ou rebeldia incontida, para transformar-se em desajuste com alguma chance de tornar-se provável. É pelo trabalho formidável dos montadores Jonatas Rubert e também de Fernandes que vislumbramos esse questionamento de Corrêa entre muitos outros, mas que aqui revela que o autor não estava afim de passar a mão na cabeça mesmo em cima de uma nesga de probabilidade com o qual ele não precisava elaborar dissecação, mas que está lá, pedindo para ganhar passagem. 

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É um olhar muito particular para o que se é, compreendendo uma história ampla de tempo, justamente por olhar para um recorte bastante longo. Mais uma vez apontando o acerto de sua edição, o filme consegue tornar sucinta e não deixar rastros ausentes de uma trajetória de vida. Memórias de um Esclerosado nasce dessa necessidade do diretor de tirar o olhar represado para sua própria jornada e escrever uma antologia animada sobre si, e carregar esse expurgo até essa realização de um sonho que, a essa altura, poderia ser tratado como impossível por grande parte dos seres. Não para ele, que mistura texturas, adentra algumas camadas de possibilidades estéticas, e acaba por levar para as telas o tanto de sua arte inicial, sem deixar de tentar tornar suas imagens coloridas em uma espécie de live-action documental. 

Não há qualquer micro resquício de auto comiseração ou paternalismo na obra, pelo contrário, talvez encontremos muitas formas de humanizar Corrêa, inclusive em seus defeitos. Mesmo que seu registro temporal pareça, em algum momento, confuso em demasia, ao menos na forma em como apresenta alguns outros personagens e seus sentimentos, Memórias de um Esclerosado tenta nos colocar na espiral de devaneio da qual esse autor mergulha ao falar de si. Não somente é sedutor acompanhá-lo em suas porções contraditórias, tanto do naturalismo que registra seus banhos, até suas tantas experimentações visuais que complexificam um tipo que encontrou espaço na auto ironia tão presente nos melhores talentos. 

O desfecho com uma cena que nasce brilhante por tudo o que ela representa no todo que é Cinema, já colocou Memórias de um Esclerosado na linha de frente do que o Cine PE 2024 irá apresentar esse ano, e tem condições de sobreviver ao festival para encontrar verdade entre outros públicos. É um retrato de camadas nuançadas de construção cinematográfica, que interliga várias confecções de imagens, de viagens no tempo cronológico e que por si só já representava um risco estético, entre o que poderia funcionar ou apresentar-se como um desafio impossível de evoluir. O resultado é divertido e leve, ao mesmo tempo que não lhe falta pungência e a confirmação de uma nova cena dentro da indústria balbuciante onde estamos inseridos. 

Um grande momento

O acerto de contas final com uma assombração

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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