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Grande Sertão

Agudo para o mal e para o bem

(Grande Sertão , BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama, Aventura
  • Direção: Guel Arraes
  • Roteiro: Guel Arraes, Jorge Furtado
  • Elenco: Caio Blat, Luisa Arraes, Eduardo Sterblitch, Rodrigo Lombardi, Luis Miranda, Mariana Nunes, Luellen de Castro, Lucas Oranmian
  • Duração: 110 minutos

Assim como parte da autoria cinematográfica mundial (isso vai além do Brasil), a carreira de Guel Arraes foi iniciada na tv. E não estamos falando de um diretor que passou pelo veículo dirigindo qualquer coisa, mas de um nome por trás de clássicos como Baila Comigo, Guerra dos Sexos, Vereda Tropical e os seminais TV Pirata, Armação Ilimitada, A Comédia da Vida Privada e Sexo Frágil. Ao estrear no cinema com uma montagem reduzida de um clássico seu, O Auto da Compadecida, não se fazia ideia de que estávamos observando o surgimento de um filme tão cultuado. É curioso pensar que Grande Sertão, filme que abre o Cine PE 2024 e entra em cartaz nos cinemas no mesmo dia, é apenas o seu sexto longa – e que esse ano lança também seu sétimo, O Auto da Compadecida 2 – o filme mais esperado da temporada. 

Não há dúvida de que Grande Sertão é seu projeto mais ambicioso, e sua tentativa de risco kamikaze em um período tão avesso à experimentação uma forma de exercer seu papel libertário enquanto artista. Obviamente baseado em um dos livros mais celebrados da nossa literatura, essa adaptação do genial Guimarães Rosa tinha tudo para dar errado, a começar por ser lançado praticamente concomitante a O Diabo na Rua do Meio do Redemunho, versão de Bia Lessa para a mesma obra. Em duas porções diferentes, os dois filmes recusam o olhar naturalista que a histórica versão para a tv de 1985, estrelada por Tony Ramos, Bruna Lombardi e Tarcísio Meira. Com Arraes, a fábula explode em tons berrantes e exigindo da plateia sua conexão; baseia-se nisso a ideia de envolver-se ou não com o todo.

O que Arraes não permite em sua obra, como um todo, é um olhar sossegado, porque sua intenção foi sempre tirar a expectativa dos eixos, e promover um barulho, além de reverberá-lo; nesse sentido, Romance permanece sendo sua tentativa mais intimista. Mas também é finalmente com Rosa que o diretor enxerga o potencial de explorar uma visão artística de comunicação com o que lhe inspirou na carreira. Então se a prosa do mineiro é a responsável pelo mergulho em uma atmosfera particular, olhando para o que ele explorou visualmente conseguimos enxergar com clareza os ecos de Romeu + Julieta de Baz Luhrmann, das visões barrocas de Akira Kurosawa (principalmente Ran), de uma proposta épica no olhar para o que o próprio cinema brasileiro entregou dentro de um escopo mais humanista. Em resumo, a Guel interessava uma releitura de signos que traduzimos dentro de um olhar normatizado, tirando dessa estrutura uma parábola que abraça muitos rostos. 

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Essa é uma abordagem feérica para uma obra já conhecida, já tratada em muitas mídias, que aqui ganha seus contornos fantásticos – enquanto gênero e enquanto adjetivo. Como a maior parte das propostas de risco, Grande Sertão aposta em algo muito maior, em escopo e em comentário coletivo, do que provavelmente qualquer um seria capaz de administrar. Mas penso se esses riscos não eram sabidos, e encarados com a frieza necessária para não podar suas restrições – mesmo as mais incontroláveis. Nesse campo de acertos e erros, o processo mais indicado era o de não ter medo de enfrentar esses excessos, tanto da produção quanto do encontro com o espectador, e a virtual relação do mesmo com o que se vê. É um processo sem amarras, onde dificilmente conseguirá absorver as qualidades quem não tiver aberto a se indispor com os problemas – e percebê-los como parte do processo. 

A maior ranhura narrativa em torno de Grande Sertão vem das decisões tomadas acerca de Diadorim, e nem dá pra dizer que isso não era de se imaginar. Diadorim é uma das personagens mais clássicas da nossa literatura, e as curvas com as quais Rosa a criou em 1956 hoje têm contornos que estão mais do que ressignificados. Na ânsia de não encontrar nenhuma resistência em relação a sua obra, Arraes concebeu novos, digamos, espelhos para onde a protagonista pode enxergar-se. Isso ampliou suas possibilidades em tese, mas tirou dela uma representatividade importante. Talvez não haja o que problematizar em torno de sua origem, mas essa opção narrativa craquelou detalhes fundamentais de sua criação, meio que transformando o filme em, ao mesmo tempo, uma transposição muito aproximada do que seu autor criou, e também livre para conquistar novas permissões. O resultado não é ruim para a narrativa, tampouco é positivo para o que sua essência é. 

Outro ponto com o qual o filme não dialoga a contento é a paixão que perpassa toda a superfície de ‘Grande Sertão: Veredas’, o livro. Todas as decisões que afloram de sua narrativa, não apenas as envolvendo Riobaldo e Diadorim, são motivadas por uma gama de sentimentos que conectam cada relação mostrada, e cada movimentação tomada em cena. Grande Sertão tem grandes soluções envolvendo a engenharia da criação de cada elemento, é um projeto de dinamismo impressionante (o que nem sempre significa que essa agilidade ajude a montagem, excessivamente clipada em determinados momentos), mas nada disso consegue entregar essa paixão tão exasperante cara ao projeto. Existe uma entrega que é tátil por parte de Arraes, e de grande parte de um elenco cheio de pontos altos, mas esse envolvimento braçal não consegue ser transformado em sentimento. Então uma dose importante do que significa cada motivação em cena, que é a conexão extrema e emocional entre todos e cada um ali, parece ter ficado de fora da equação. 

Por mais que o elenco esteja acima de seus lugares de conforto e geralmente use isso a seu favor, toda essa abordagem comunitária que permite a potência de Grande Sertão nem sempre alcança um lugar de aprofundamento. Ainda assim, nomes precisam ser realçados, como o de Caio Blat, que consegue superar os desafios de um novo encontro com Riobaldo e torná-lo mais uma vez crível. Mas uma dupla me chama a atenção em particular, e não podemos de forma alguma olhar para os trabalhos de Eduardo Sterblitch e Luis Miranda e tentar contemporizar. De maneiras muito expressivas, ambos registram performances quase antagônicas nos locais que encontraram para representação. O primeiro, ultra caracterizado, aposta no mínimo possível porque entende que já estava no grau máximo de qualificação gráfica, obtendo algo inesquecível. Igualmente marcante temos Miranda, um ator de recursos ilimitados, que esquece seu registro vocal agudo com o qual sua porção cômica muitas vezes flerta, para entregar um olhar grave sobre uma figura gigantesca. 

Entre opostos qualitativos, creio que o encontro com essa nova versão de uma história que, ao menos em 2024 volta a ocupar muito espaço de discussão, ainda se mantenha relevante no que é construído pelo seu autor. Arraes não estava afim de mais uma vez se empregar como esse olhar tradicionalmente amplificado; ele queria zerar o jogo. E nas cenas mais difíceis, exatamente quando acessada em seu gigantismo, o acerto é exemplar – assistimos a um espetáculo de balé, com a sincronicidade dos corpos realizando algo único, ao nos espantar com a criação corporal de cada sequência de encontros. Chego ao final de Grande Sertão pessoalmente tocado com o que Luisa Arraes entrega nos seus cinco minutos finais, um show que mistura rodeio, com touradas espanholas, com Deborah Colker, com Cirque du Soleil. Os defeitos estão e estarão lá, ainda exibidos, mas o que é provado pela forma quente com que cada imagem invade o telão, é igualmente surreal. 

Um grande momento

Diadorim encontra seu destino

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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