Crítica | Outras metragens

Minha Mãe É uma Vaca

Sobrevivendo à ausência

(Minha Mãe É uma Vaca, BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Ficção
  • Direção: Moara Passoni
  • Roteiro: Moara Passoni, Fernanda Frotté
  • Elenco: Luisa Bastos, Helena Albergaria, Andrey Rener Scala Aquino, Claudio Rodrigues da Silva, Ana Carolina Guztazazky
  • Duração: 15 minutos

Em um Pantanal que está deixando de existir pelo fogo, Mia, aos doze anos, tenta encontrar o que sobrou do amor e da proteção que perdeu. Em Minha Mãe É Uma Vaca, de Moara Passoni, a ausência da mãe se materializa em ameaças que rondam o espaço e os corpos, desordenando os afetos e o território. Além das queimadas, a vaca e a onça são símbolos que carregam o peso da memória, da resistência e do risco.

Em um Brasil marcado por perseguições, o filme marca sua atemporalidade: pode muito bem se passar entre os golpes da República, nos anos de chumbo da ditadura ou no presente reacionário que se encanta com a extrema direita. A narrativa costura elementos sem se explicar demais, deixando que o espectador junte as peças a partir de sentimentos que ganham forma. A mãe ausente, o medo constante, o silêncio ameaçador e a insegurança de uma menina que se transfoma em mulher se apresentam de maneira lógica, mas não óbvia. Deslocada num mundo que insiste em negar seu lugar, Mia é o retrato da dor e da espera.

A fotografia de Carolina Costa funciona na aproximação tanto do espaço quanto da jovem protagonista. Em tons secos e luz cortante, o Pantanal aparece como território de beleza e devastação. A montagem picotada afirma urgência e inquietação, assim como os cortes abruptos, vozes sobrepostas e reticências visuais trazem a tensão e não nos deixam descansar. A trilha se sobrepõe em camadas, confundindo desejo, presente e passado, e fazendo o silêncio lembrar que o perigo faz parte do ambiente.

O modo como Mia atravessa esse espaço interessa. A atuação de Luisa Bastos dá corpo à angústia sem teatralidade, seja pelo olhar atento, pelo gesto contido, ou pela respiração ansiosa. Ela carrega dentro de si a solidão de todos com quem agora convive e parece já terem perdido a esperaça. Nesse ambiente, a menina precisa romper com sua inocência enquanto enfrenta uma solidão que não admite companhia.

O medo que circunda todas as existências do curta é protagonista invisível. A onça é assombro, símbolo de opressão que ataca o corpo e a memória. Já as queimadas, atos de destruição premeditada, funcionam como estilhaços de uma ordem do mal que avança sobre o natural, sobre a natureza em si. No centro disso tudo, Mia se transforma, passa a ser aquela que protege – não apenas a si mesma, mas o espaço que resta, a memória que sobra.

Minha Mãe É Uma Vaca não encerra o relato de uma perda, insiste na fragilidade e na fissura. Não é um curta que afaga, mas demonstra que construir afeto, mesmo nos restos do abandono, é permanência. E que deixar uma menina crescer enquanto aguarda é também aceitar que ela carregue o vazio como parte de sua existência.

Um grande momento
Enfrentando o perigo

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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