Crítica | Festival

Cannes 2022: Drama: modos de usar

Showing Up, de Kelly Reichardt
(EUA, 2022)
Competição

Close, de Lukas Dhont
(Bélgica/França/Holanda, 2022)
Competição

L’envol, de Pietro Marcello
(França/Itália, 2022)
Quinzena dos Realizadores

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Encontrar a verdade específica por trás da construção de uma obra de ficção é algo que não pode seguir nenhuma fórmula (malgrado muita gente ganhar dinheiro vendendo livros e oferecendo cursos dizendo o contrário disso), pois, na verdade, é algo que muda de filme a filme. Nesses dias finais do Festival de Cannes pudemos ver alguns filmes que comprovam exatamente isso, pela maneira como chegam plenamente a seus objetivos por caminhos quase que completamente opostos.

De um lado, temos o novo filme da americana Kelly Reichardt (da qual já tínhamos falado um pouco no começo do Festival, pois foi homenageada no dia da abertura com um prêmio pelo conjunto da sua obra): Showing Up, embora dê uma continuidade bastante natural à sua obra anterior, também a radicaliza bastante de muitas maneiras. O filme trata, basicamente, dos últimos três dias da vida comum de uma artista plástica antes da abertura da sua nova exposição. No entanto, esses dias não são ocupados por angústias criativas frente ao trabalho nem por grandes discussões acerca do lugar da arte no mundo nem nada assim, muito pelo contrário: Lizzie (interpretada por Michelle Williams) passa a maior parte desses dias precisando lidar com questões como o fato do seu gato atacar um pombo, da sua casa estar sem água quente, do seu pai estar recebendo convidados bastante desagradáveis ou do cotidiano no seu trabalho burocrático numa escola de arte dirigida pela sua mãe. 

Pois é em meio a tudo isso que Lizzie completa suas esculturas em cerâmica (as quais vão depender, também, do bom funcionamento do forno onde são queimadas para atingir sua forma final), e o que o filme de Reichardt registra é que o trabalho artístico não vai nunca se dar numa espécie de deslocamento em relação às pequenezas da existência, como muitos filmes por vezes fazem questão de maquiar ao lidar com processos criativos de grandes artistas. A arte se realiza justamente na relação direta entre o impulso criador, o desejo de expressão e todas essas diferentes camadas da vida comezinha que se imprimem das mais distintas e misteriosas formas nos objetos criados ao final do processo. Claro que existe aí uma metáfora um tanto óbvia (mas não menos exata) entre o trabalho de Lizzie e a criação da própria Reichardt: ainda que bem pouco metalinguístico numa forma mais clara, Showing Up é um desses filmes que reflete de maneira ampla sobre os processos de criação e o lugar da arte no mundo (do mundo em geral, mas especialmente do mundo daqueles que a realizam). 

Showing Up
Allyson Riggs/A24 Showing Up, de Kelly Reichardt

Mas o grande mistério do cinema de Reichardt emerge justamente da forma oblíqua em que ela vai chegando nesse ponto, pois seu filme evolui plano a plano, cena a cena, a partir de uma linguagem dramática em que cada pequeno detalhe coloca não um tijolinho na construção do filme, mas sim um micropedaço de cada tijolo. Essa construção aos poucos, quase como se não estivesse sendo feita, só vai ser percebida mesmo no clímax (a abertura da exposição), em que tudo parece vir à tona de uma vez e, quando finalmente vemos as obras prontas e expostas (as mesmas obras cujos rascunhos em desenho abrem o filme nos créditos), é difícil evitar ser tomado pela poderosa epifania de que elas de fato surgem quase como um mistério, como se não tivéssemos de fato  sequer entendido que elas estavam sendo feitas até que as vemos prontas, ofertadas ao mundo (no qual serão recebidas com maravilhamento por uns, desinteresse por outros, etc). 

É a mesma forma como, por exemplo, Lizzie é construída por Michelle Williams, quase num processo de anti-interpretação: não há grandes gestos de cenas dramáticas, não há hiper-significações sobre a vida pregressa ou os traumas e questões que constituem Lizzie. Assim como suas obras (ou como o filme de Reichardt), vamos construindo Lizzie a partir de cada pequeno gesto, da maneira como reage à proprietária de sua casa (e também colega de trabalho) que não resolve o problema da água quente, de como cuida do pombo atacado pelo gato, de como conversa com seu pai ou seu irmão. Se Lizzie nos parece enigmática em muitos momentos é porque, via de regra, assim são os humanos: lê-los não é simples, e a cada gesto aparentemente significativo pode se seguir um outro em direção oposta, aparentemente contraditório – enquanto no fundo tão somente parte de uma construção mais densa e misteriosa. A tudo isso, Reichardt responde pela depuração absoluta de uma forma de trabalhar, onde em determinado momento quase nos esquecemos que estamos vendo uma construção cuidadosa e estudada: seu cinema, nos seus melhores momentos, parece ter a força de uma evidência – ele simplesmente está lá, quase que independente do nosso olhar. Ou melhor: na verdade, ele é feito cuidadosamente para assim parecer.

Curiosamente, no mesmo dia em que foi exibido o filme de Reichardt, passou um filme de um cineasta que ainda dá seus primeiros passos na realização, mas que já exibe um enorme domínio do seu meio, só que por um caminho totalmente distinto. Pois se o belga Lukas Dhont constrói seu novo filme, Close, também a partir do foco dramático no cotidiano pequeno de seus personagens principais, sua aproximação com o drama não tem nada a ver com a contenção de Reichardt: Dhont filma como um pintor que trabalha em pinceladas firmes e de cores saturadas. Seu retrato de uma amizade pré-adolescente entre dois meninos é construído a partir de um diálogo constante com certas convenções estereotípicas da linguagem do cinema: a beleza das imagens da primeira meia hora é quase sufocante na sua forma de sinalizar que a partilha daquela relação é construída com a consciência da idealização, típica de como a memória trabalha essa fase da vida. 

Close, drama de Lucas Dhont
Kris Dewitte Close, de Lukas Dhont

Para Dhont é necessário elevar ao máximo esse sentimento inicial de assistirmos sem dúvida ao que seriam “os melhores momentos de uma vida” para que ele possa, em seguida, cortá-lo de maneira dura e direta, com uma decisão dramatúrgica em dó maior (para usar a metáfora de uma outra forma de arte). A forma como essa construção dramática é colocada em andamento, no exagero poético de uma elevação para chegar a um corte brusco, é extremamente estudada e usa de certas ferramentas conhecidas (como, principalmente, a música). No entanto, não é por isso que não consiga ser não só eficaz como plenamente sentida: afinal, se no cinema de ficção tudo é ilusão, mesmo (e até muito mais) a impressão de realidade, não se trata de nenhuma enorme vantagem a busca anódina de uma suposta “autenticidade”. Afinal, como dizíamos no começo do texto, a verdade interna de cada obra é encontrada a partir das regras do jogo que propõe, e onde se encontram as rachaduras é nessa tal lógica interna. 

Assim como Reichardt faz com Williams, Dhont vai tornar corpo a sua proposta de cinema a partir do trabalho com seu ator principal, o estreante Eden Dambrine. Há um trabalho detalhado e cuidadoso especialmente na forma como os olhos de Dambrine servem como principal ponto de contato do espectador com o sentimento do filme, com a maneira como seu personagem, Léo, vai trafegar por caminhos tortuosos na forma da construção de uma ideia de masculino a partir do confronto entre seus sentimentos e as demandas do mundo exterior. Assim Close é menos o retrato de uma perda de inocência, algo muito comum aos filmes passados nessa idade, e mais da encarnação dos conflitos entre as expectativas individuais e coletivas sobre a presença de um jovem homem no mundo. Que Dhont deixe mais à mostra do que Reichardt a forma como faz uso das suas ferramentas artísticas na construção dessa empatia não torna menos misterioso e potente a maneira que consegue, principalmente através de Dambrine, atingir esse lugar da construção de uma verdade que surge inegavelmente encarnada na tela.

Quase que num exato meio termo entre a aparente descontrução de Reichardt da ideia de drama e a estudada elaboração manipulada por Dhont, temos o novo filme de Pietro Marcello, L’envol, que abriu a Quinzena dos Realizadores (mas que só assisti numa reprise já nesse último dia). Começando com imagens documentais do final da I Guerra Mundial, e da imagem de soldados retornando a suas vidas pré-conflito, Marcello ancora numa realidade muito específica o drama que vai acompanhar a partir daí, e que basicamente diz respeito a essa dúvida: é possível reencontrar o sentido na vida a partir de uma experiência como a da guerra – especialmente se, no meio dela, você também perde alguém como a sua mulher, caso do protagonista aqui. No entanto, se parte de uma pergunta ou uma realidade tão intrinsecamente dramática como esta, a maneira como Marcello desenvolve sua narrativa se aproxima bem mais da maneira que discutíamos em Reichardt, ainda que com um desvio decisivo: afinal, seu filme não é um retrato de uma vivência contemporânea e, portanto, não tem como esconder o fato muito básico de que tudo que vemos é (re)construção.

L'envol
Cortesia La Quinzaine des Réalisateurs L’envol, de Pietro Marcello

Assim como no caso da Lizzie de Reichardt/Williams, Marcello vai encarnar no seu protagonista Raphael (interpretado por Raphael Thiery) esse processo de existência a partir dos pequenos gestos e da fisicalidade (não por acaso ele também é um artista de trabalho físico, no caso um artesão em madeira – embora sua criação aqui tenha muito mais a ver com a luta pela subsistência do que qualquer construção abstrata do mundo da arte). Assim como no filme de Dhont, surge como complemento da trajetória de Raphael uma jovem, sua filha Juliette, cuja formação de olhar e personalidade se darão ao redor das dificuldades inerentes à vida enfrentada pelo seu pai (para além do pós-Guerra em si, ele tem uma existência de pária na sua cidade por razões relacionadas com a morte de sua mulher). A maneira como o filme encontra sua força está justamente na superposição desses dois personagens, um que busca uma espécie de renascimento após os traumas da Guerra e do luto, e a outra que precisa construir um olhar novo para o mundo a partir desse lugar de extrema fragilidade e dor.

Descrito assim, parece um filme de enorme peso e drama, mas na verdade L’envol é construído e vivido como quase o oposto disso: a partir de um esforço estético cuidadoso para nos fazer habitar esse espaço e tempo específicos, Marcello trabalha com pinceladas muito leves sobre a sua tela, nos envolvendo de forma lenta e imersiva na vida e sentimentos de seus personagens, até os desfechos dramáticos fortes e pregnantes que consegue. É uma terceira e distinta maneira de trabalhar com a ficção e seus códigos, nenhuma delas melhor ou pior que a outra, pelo contrário. A magia (palavra importante no filme de Marcello, aliás) está na maneira que cada realizador/a, e cada filme, precisa descobrir sua própria voz, e a melhor maneira de emissão desta. A partir daí, cada um imprimirá sua verdade a partir de como escolher traçar suas linhas, sempre com enorme liberdade e infinitas possibilidades. Os resultados podem chegar por caminhos quase opostos, mas passando sempre por muita elaboração e inspiração, além de olhos muito abertos pro mundo frente à câmera.

[75º Festival de Cannes]

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Eduardo Valente

Eduardo Valente é cineasta, crítico e programador de cinema, trabalhando desde 2016 como delegado do Festival de Berlim no Brasil. Ele também é membro do comitê de seleção do Olhar de Cinema, festival que acontece em Curitiba. Dirigiu três curtas e um longa metragem, todos exibidos no Festival de Cannes; trabalhou como assessor internacional na ANCINE; e foi editor de duas revistas online de crítica de cinema, Contracampo e Cinética.
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