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Destacamento Blood

(Da 5 Bloods, EUA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Guerra
  • Direção: Spike Lee
  • Roteiro: Delroy Lindo, Jonathan Majors, Clarke Peters, Norm Lewis, Isiah Whitlock Jr., Mélanie Thierry, Paul Walter Hauser, Jasper Pääkkönen, Jean Reno, Chadwick Boseman
  • Elenco: Danny Bilson, Paul De Meo, Kevin Willmott, Spike Lee
  • Duração: 154 minutos

Spike Lee definitivamente fez as pazes com a relevância. Depois de anos amargando projetos muito aquém das capacidades de alguém que um dia nos apresentou Faça a Coisa Certa, ele voltou com um petardo essencial para sua aguerrida militância e foi reconhecido no mundo inteiro – Infiltrado na Klan era o filme que todos esperávamos de Lee. Dois anos depois, ele volta a olhar nos olhos da América racista cobrando um valor que ainda é devido ao seu povo, e Destacamento Blood representa esse resgate, literal e metafórico, sobre os anos que ninguém devolverá, mas que precisam ser debitados.

Com algum didatismo (que é absolutamente perdoado), Lee apresenta uma aula de História afro-americana com direito a apresentação de heróis esquecidos ou apagados dos livros, do passado distante ou recente, e que contribuiriam para elevar a auto estima de qualquer povo. Contando uma passagem fictícia mas repleta de um fundo histórico real e cruel, o autor se habilita a reescrever o presente a partir de um passado injusto. Diferente do seu espetacular longa anterior, aqui vemos a ficção se valer de dados reais para construir uma fantasia que aos poucos vai se embrenhando na psicologia dos sobreviventes de guerra, e repaginando fatos que mancham ainda mais o racismo secular dos EUA.

Destacamento Blood (Da 5 Bloods, Spike Lee, 2020)

Para tanto, Lee concebe um híbrido de filme de guerra com um tratado sobre os traumas da mesma a perdurar por décadas. Filmando com a qualidade que lhe é comum, o mais importante autor negro se arvora por diferentes técnicas e janelas de exibição para diferenciar os tempos de sua obra. Nada revolucionário, mas eficiente e executado com profunda qualidade graças também a sua parceria com o montador Adam Gough (de Roma), que conecta passado e presente, delírio e realidade, o cômico e o trágico, de modo a realçar as sutilezas de cada passagem, dando vigor e potência a um material que imageticamente impressiona.

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Como está falando especificamente de Vietnã, Lee não se intimida pela sombra de Apocalypse Now, pelo contrário – em pelo menos dois momentos o filme aproveita para mostrar que até uma obra-prima pode ser emulada e também sacaneada, com sofisticação e inteligência. Com a luz especial que Newton Thomas Sigel (de Resgate e Drive) compõe pro seu filme, empregando paletas e granulações diferentes a cada segmento, incluindo homenagens ao trabalho de Francis Ford Coppola e Vitorio Storaro, Destacamento Blood tem um rosto próprio e personalidade suficiente para elevar o material narrativo e criar camadas sutis de elaboração visual para um roteiro que aponta muitos lados.

O roteiro mais uma vez escrito a oito mãos de uma obra de Lee (o material que venceu o Oscar em Infiltrado na Klan também contava com quatro escritores) apresenta ramificação para muitos lados diferentes que obviamente se encontrarão em determinado momento, mas que vários deles não se sobressaem ou são desnecessários para o todo, como o passado de Otis ou a quantidade exorbitante de personagens, nacionalidades e funções. Incomoda também a diferença de importância que cada um dos componentes do destacamento tem no roteiro – dois muito, um bem pouco e o quarto… bem, quase figurante. Para falar de revisionismo histórico ao povo negro explorado comumente em guerras americanas, acrescentar uma francesa voluntária em zona de guerra me parece gratuito.

Em meio ao excesso de personagens em desnível de qualidade de desenvolvimento, o elenco sofrer com essa gangorra é esperado, mas Spike Lee tem um trunfo no seu conjunto. Paul é o personagem mais rico, cheio de deliciosas contradições, que carrega todas as críticas a sociedade atual, ao ocupante atual da Casa Branca, uma metralhadora giratória de idiossincrasias, enfim, o personagem-chave, dotado dos melhores diálogos e com o relevo mais consistente. Entregue a um ator vasto em recursos como Delroy Lindo, Paul rouba Destacamento Blood para si e é como se tudo de mais potente e relevante ao filme precisasse obrigatoriamente passar por ele. Nesse lugar, Lindo tem o papel de sua vida e entrega uma interpretação daquelas inesquecíveis, com um conjunto de cenas invejável para qualquer portfólio.

Aos poucos percebemos que o filme precisa mais de Paul que o personagem dele, o que não necessariamente é um elogio. Nas entrelinhas do filme, Spike Lee mais uma vez provoca e reflete a situação do afro-americano historicamente vilipendiado e tornado refém de uma escravidão que só muda de feições através dos tempos, e isso eleva mais uma vez seu material bruto. Pairando sobre o filme, Delroy Lindo toma a metade do debate para suas ações, seus olhos e suas palavras e coloca Destacamento Blood debaixo de suas asas, transformando o filme em palco para que saia dele e passe por ele todas as mensagens de seu diretor.

Um Grande Momento:
O monólogo de Paul.

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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