Crítica | Outras metragens

Les Bêtes

A revolta dos restos

Obra artesanal nascida da pandemia, onde antigos bonecos, engavetados por 20 anos, foram ressuscitados para ganhar vida num teatro de sombras e poeira, Les Bêtes é cinema que nasce do silêncio e da limitação. O curta de animação dirigido por Michael Granberry mostra que é possível criar um reino inteiro a partir dos restos. Há poesia nessa reciclagem material e narrativa, uma certa homenagem ao possível, ao que resiste. Não há palavras, as imagens são orquestra e grito, a música e a iluminação dialogam num balé entre o encanto e a repulsa, e o resultado é um fantasia sombria que se insinua nos sentidos.

Les Bêtes começa na quietude inquietante de um reino onde um coelho misterioso – sempre um coelho – surge com chaves mágicas. Aos poucos, vão surgindo estruturas de areia, arame, metal, plástico, folhas e lixo que se animam em uma dança sombria, convocados para entreter um rei e sua corte decadente. A plasticidade dessas criaturas de stop‑motion expõe contraste: elas são frágeis e grotescas ao mesmo tempo, materializando uma tensão que cresce sem falas .

O preto e branco reforça o clima expressionista, fácil de ser referenciado, e a luz cria vultos que parecem respirar, como se a câmera fosse cúmplice de um ritual que escapa ao controle. Na dança diante do trono, o filme revela seu encantamento que flerta com o horror. Não há como esquecer da subversão silenciosa do levante as bestas, pois o conto se move em direção a um ponto de ruptura, quando a digressão brutal da corte gera a fúria que desperta os oprimidos. Em pouco mais de 11 minutos, o diretor Michael Granberry abre um universo inteiro, construído como quem escava um mito antigo em escala diminuta.

Les Bêtes não precisa explicar seu valor. Deixa que o coelho traga os outros, que as marionetes revelem sua carne e que o movimento construa sua história. A animação é um mergulho microscópico num cosmos onde o maravilhoso e o horror se entrelaçam, e, quando a rebelião silenciosa explode, entendemos que estamos diante de um mito cinético: pequeno, contido, mas inteiro.

Misturando apuro e fúria, Les Bêtes demonstra que os contos mais potentes cabem em 12 minutos e, nesse tempo, criaturas são capazes de reinstaurar a tradição do fantástico e nos lembrar de olhar com atenção para o que parece insignificante.

Um grande momento
O levante

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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